╡CAPÍTULO TRÊS╞
SURPRESINHA
PARTE
DE NÓS sabe como é uma loucura esse tempo e como ele passa rápido. Outra parte
não quer nem saber disso, quer as coisas como estão, exceto quando estamos com
dor de barriga, aí as duas partes querem que o tempo passe bem rápido. Mas quem
que já não desejou que o tempo passasse num piscar de olhos para que tudo aquilo
acabasse e finalmente as coisas voltassem no eixo? Quem nunca quis dormir pelo
menos três horas antes na véspera do aniversário para chegar logo o dia? Quem,
eu pergunto quem, já não tentou flagrar o papai Noel no dia de natal? Creio que
o tempo seja um verdadeiro mistério para o mundo, nós nunca o sabemos e nunca
temos a noção exata dele. Por exemplo... tente adivinhar que horas são agora,
mas sem trapacear. Se acertar ganha um doce, mas você tem que admitir que foi
pura sorte. Os lubrinos, por exemplo, tem uma cantiga muito corriqueira para
essa coisa que é um mistério a eles:
Tempo
é hoje
Pelo
ontem vejo
Ontem
não é hoje
Mas
também é tempo
Tempo
de espera
Ele
se acresce
Gira
aquela esfera
E
tudo desaparece
A
noite cai
Me
sobe o pensamento
Tempo
vem e vai
Encontro-me
por dentro
Para
tudo há tempo
Ah,
exatamente o tempo. Lembra-se de sua infância com os amigos? Os pés sujos, não
podendo entrar em casa, os bonecos todos para arrumar depois de uma tarde
inteira ou as bonecas, sem braço, mas que eram cuidadas com muito carinho e
depois despejadas numa caixa de papelão? Outras não, eu sei, outras tinham um
carrinho próprio; mas bonecos... Bonecos não envelhecem. Logo, a boneca
torna-se borracha ou pano e fica negligenciada. Arrumam-se namorados ou
namoradas, e quando se vê, a adolescência já é passada, o mundo já é visto com
olhos mais preocupados e tudo torna-se tão ainda mais curioso... Tudo, na
medida em que envelhecemos, vamos percebendo a capacidade do mundo que nos
rodeia e tudo torna-se mais belo, e no entanto mais triste. Porém, o tempo é o
único indestrutível ser. Não se mata à espada, não se joga uma flecha nem nada.
O tempo é um mistério.
E enquanto ele passa com uma rapidez
incessante, as coisas em Lubrín vêm-se mudando aos poucos. Os lustres todos
trocados, de sinos para cachos de uva cintilantes, com um brilho pálido capaz
de iluminar como se fossem dezoito velas. As aldravas do castelo inteiro foram
trocadas, exceto a do salão real, que por escolha de Gustavo, uma era sino,
outra uma vinha. A escultura da fonte, a qual Ventura havia escolhido do exato
momento do casamento estava quase em seu fim.
Alguns quadros no interior também foram
trocados, a maioria deles guardados junto às antiguidades, as cortinas todas
foram trocadas, perdendo o bordado de sino e apenas adquirindo uvas desenhadas
com linhas de ouro, exceto, mais uma vez, no salão real, que ainda conservava
em honra, outras coisas do passado.
Sid, embora o tempo passasse apenas sua barba
crescia verdadeiramente negra, o resto mantinha-se intacto, coisa que intrigava
de certo modo a Gustavo, que certa noite pegou-se pensando: “Só pode ser aquela
touca que ele mal tira, só pode!”, mas nunca foi mais que uma curiosidade tola,
pois amava Sid como se fosse seu pai, na verdade, era o que tinha de mais
próximo de seu pai, seu Herói, O Rei da antiga Lubrín de Sinos. Agora, ele
tinha sua própria Lubrín do Castelo de Vinho.
E por falar nisso, tudo dera certo depois do
ritual feito há um bom tempo atrás – embora você provavelmente tenha acabado de
ler sobre ele. O odor magnífico do vinho exalava-se das entranhas do castelo,
levando sabor à água, e levando felicidade aos habitantes constantemente. As
nuvens agourentas dissiparam-se depressa, os acidentes com faca e carroça diminuíram,
e até a cobrança de impostos diminuiu. Todavia, as ruas de Lubrín perderam toda
a uva que seria possível existir e ninguém fabricava seu vinho ou fazia seu
suco de uva. Tudo aquilo agora existia dentro dos muros de Lubrín e só poderia
ser bebido lá dentro, pois tornara-se uma espécie de segredo, o segredo da
felicidade e devia ser o máximo protegido.
Enquanto – mais uma vez – esperamos o tempo
passar, deixa-me dar notícias da família Daco. Eles receberam uma mansão na segunda
Sul como era de costume as pessoas ricas morarem. E o Pai Daco, no entanto, com
o dinheiro, fizera uma biblioteca e esta se localizava num condado ao sudeste
de Lubrín, fora dos limites, mas que sobre a torre da Catedral do Sino era
possível enxergá-la. A fez lá, pois começou andar de cavalo e adorava viajar, e
olha que era bem longe. Para ficar cuidando, pediram para a dona da casa, que
na verdade era herdeira, Margareth, a qual falarei muito mais adiante, pois ela
tem participação eu diria vital nessa história como vocês saberão a hora de
chegar – essas histórias tem um monte de coisa a se dizer, mas que só o tempo
pode responder, olhe só, o tempo. Enfim, ela veio cuidando de tudo desde então.
Era uma moça nova, por volta dos seus dezenove anos de idade, fascinada por leitura.
Por isso, a biblioteca.
Por fim, acho que já é hora de pararmos de
esperar, pois aqui vem uma coisa extremamente estranha, que, porém fizera todos
gargalharem no momento, com um pouco de estranheza, é claro.
Nove meses se passaram enquanto essas frases
foram escritas. Com esse tempo, Ventura veio gerando seu filho. Estava linda
gestante, a barriga enorme e como as camareiras cochichavam às vezes, parecia
que ia ter gêmeos, porém é claro que não, sua filha, Emily a qual nasceria era
de fato grande. Havia um quarto só para ela, com bonecas, e roupas femininas,
com laços coloridos, borboletas na parede, estrelas cintilantes no céu do
quarto. Emily estava sendo esperada com grande ansiedade e no dia de seu
nascimento, como creio ter falado, a notícia seria espalhada sem boatos, pois é
claro que havia boatos. As histórias não escapavam, porém haviam pessoas que
mal sabiam que o reino estava para ter uma princesa. E se muito te conheço, meu
caro, você já sabe o que vem adiante, pois certamente você tem os seus próprios
boatos. É estranho como a mente trabalha. Por enquanto, por aqui, então, não
falarei mais nada, deixarei que esse maravilhoso mistério que é o tempo lhe
responder.
13
VENTURA
MANTEVE-SE DE repouso na ala hospitalar do castelo. Ela dormia. Havia um livro
em seu colo e a tarde corria pelo lado de fora com raios fracos de sol,
trespassando a cortina entreaberta da ala. Dentro da ala, noutros quartos,
havia outras pessoas, é claro. Soldados machucados, pessoas doentes, mas
ninguém prestes a morrer. Quando o hospital de Lubrín não funcionasse, os
plebeus utilizavam o castelo, mas bem raramente era preciso, geralmente em
períodos de férias dos médicos, ou quando alguns deles não conseguiam chegar,
por serem de outras bandas além dos limites de Lubrín.
Como você mesmo pode imaginar, Gustavo não
saíra da ala, andava de lado a lado, o coração palpitando em seu peito como
engrenagens de um relógio para rolar os segundos. Fora no banheiro cerca de
quatro vezes num intervalo de quinze minutos e se não fosse Sid levar-lhe os
sapatos, estaria só de meias zanzando na sala de espera.
Na noite anterior – por que essas coisas só
acontecem no meio da noite, eu não sei -, Ventura sentiu fortes contrações em
seu ventre, acordando Gustavo com puxões bruscos no pijama e Gustavo ergueu-se
mais ligeiro que pôde para levá-la. Chamou consigo seus guardas reais e
levaram-na para ala. Gustavo, no entanto, passou a noite em claro, achando que
Emily viria à luz (da lua) num instante, mas tudo não passara de um susto. O
Doutor Pietro, um velho com a cabeça careca, com o cocuruto polido, porém com
cabelos acima das orelhas de abano, disse que estava tudo bem, mas que em breve
a princesa nasceria.
- Vou deixá-la sob cuidado das parteiras,
deixei três com ela.
- Obrigado, Pietro – dissera Gustavo acenando
com a cabeça.
A expectativa alcançava a quase todos que
estavam acordados no caminho do quarto ao hospital, pois em Lubrín,
principalmente o nascimento de uma princesa, era algo grandioso, como você pode
imaginar, então as notícias, ao contrário do previsto já estavam circulando.
Lentamente, sim, mas circulando. No final do dia, todos já saberiam que havia
uma princesa prestes a nascer.
Desde as três da madrugada, a hora que Gustavo
fora acordado de maneira muito delicada, até o instante em que Ventura adormecera
com o livro sobre o peito, nada da princesa dar as caras, mas nem mesmo isso
fizera com que Gustavo relaxasse. O que fez foi parar de andar e sentar um
pouco, pois se imagine no lugar dele. Novo, rei e pai obviamente de uma
princesa! Não, não, ele teria que ficar acordado, botara isso na cabeça.
Dentro de uma taverna na cidade, por ser uma
quinta-feira, não havia muitas pessoas, principalmente no período da manhã, mas
um beberrão que todos conheciam por Tibúm, chegara com sua barrigona imensa no
balcão e soltara a nova.
- A princesa vai nascer e me dê um copo!
Todos os presentes franziram o cenho ao mesmo
tempo, o taverneiro se aproximou mais dele, e os demais foram chegando mais
perto do balcão reforçando a audição.
- O que disse?
- O rei vai ter uma filha! Não seja idiota, ta
todo mundo sabendo! Lubrín vai ter uma princesa!
Todos primeiro ficaram chocados, depois riram.
- E como você sabe? – perguntou um dos
curiosos, de bigodão ruivo que ia até depois do queixo.
- A filha da nora do tio da prima da irmã Linda
do convento da catedral de sinos de Lubrín, disse para sua vizinha que é prima
de segundo grau da minha concunhada, disse para minha concunhada, que disse
para minha cunhada que falou para o pai dela e o pai dela, disse para a mãe
dele, que disse para minha esposa que disse para mim. Foi assim que eu fiquei
sabendo. Agora eu estou contando para vocês.
- Tibúm... isso não é nenhum truque para
receber bebida de graça, é?
- Olhe para minha cara, Orlando! Sou um homem
honesto – falou ele batendo com o punho no balcão, dando ênfase a ultima palavra.
- Agora se não quiser acreditar, tudo bem, deixe com está e pegue logo meu
copo.
Ao que o taverneiro virou as costas, os rapazes
já haviam saído todos. Cada um contou para seu avô, ou tio, empregado, cozinheiro,
cachorro, mulher, amante, padre. E estes contaram para seus filhos, primos,
sogros, mães e pais. E estes contaram para a família toda no almoço, que
contaram para o moço do correio e o moço do correio correu contar para seu
primo que já sabia da notícia.
Com isso, a expectativa alcançou todo mundo de
Lubrín antes mesmo de Emily nascer, como era o previsto.
Ventura acordara sem reações graves por volta
de quatro horas da tarde, Gustavo dormia no corredor de espera. A rainha sentia
chutes em sua barriga e chamara as parteiras. Depois de duas horas mais ou
menos, as contrações voltaram, Ventura ia começar o trabalho de parto, já seria
hora, e tudo passou a ocorrer ao mesmo tempo, mas sem desespero e depois de tudo
isso ocorreu uma surpresa, deixe-me explicar essa história.
Parecia tudo uma revolta, os fazendeiros
deixaram suas plantações, as babás levaram as crianças e as escolas pararam de
funcionar. Tavernas fecharam, o açougue parou, os cocheiros levavam comitivas
aos montes. Um vozerio alcançou a ala hospitalar. Quando a parteira abriu a
janela para ver do lado de fora, notou uma multidão: Lubrín inteira estava
esperando o nascimento de Emily!
Todos do lado de fora esperando o grande
momento, parecia uma revolta, mas não. Estavam todos lá. Alguns seguravam as
mãos um dos outros, para dar forças, a ansiedade de ter uma princesa era
enorme.
- Meu pai! – falou a parteira e fechou
rapidamente a janela com nervosismo.
Ventura começara o trabalho de parto. Seus
gritos num instante seguinte acordaram Gustavo no corredor de espera. Agora a
pulsação do coração era o dobro, ia enfartar. Ia e vinha do banheiro.
Ventura gritava demais, do lado de fora todos
se olhavam esperançosos.
- Está nascendo, rainha, continue fazendo
força! Peguei sua cabeça! Continue! – A parteira olhou para a outra sorrindo. –
Vai nascer!
O bebê veio à luz, cortaram seu cordãozinho
umbilical e deram-lhe um tapa para fazê-lo chorar.
- Olhe só, olhe só... Parece que Emily tem uma
surpresinha para nós.
No que todas do quarto olharam, para a grande
surpresa, Emily entre as pernas sabe-se lá como, tinha uma surpresinha... um
pipi. Na verdade, Emily era príncipe e as parteiras riram. Mas elas mantiveram
isso em segredo até rainha poder vê-lo. Você não sabe como essa notícia
causaria um reboliço total no castelo mais para frente.
- Veja só... Um pipi! – falara a parteira entre
risos enquanto limpara Emily, isto é... O príncipe não podia ficar com esse
nome, mas continue aí para saber como tudo se sucedeu.
Foi
mais ou menos assim pelo que eu me lembre...