╡CAPÍTULO DOIS╞
A UVA ESPERTA
6
- QUEM
É ELA, Victório? - perguntou
Álvaro contemplando no reflexo liso de uma rocha muito polida, a mulher mais
bela e branca que já vira e nunca houvera pintado.
- Esta, Álvaro Baixo, é Emily do castelo de
Vinho, Rainha de Lubrín – respondeu Victorio, e sua voz ecoou pela penumbra. –
Há anos que a rocha dos reis não revela uma rainha verdadeira.
- Quero... Tenho que pintá-la no maior quadro.
Será minha melhor obra.
E realmente foi. Suas tintas jazidas na tela
branca foram vitais para Emily e para as próximas gerações do Castelo de Vinho.
Aquela pessoa... Ele sabia o tempo todo quem era.
7
PROVAVELMENTE
O QUE acontece aqui é uma das piores coisas que eu vou contar-lhe, pois é bem
nesse momento em que as coisas delinearam um futuro para toda essa história, um
futuro realmente triste, mas que no fundo devia ser feliz e havia tudo para ser
feliz.
Depois de um ano que se casaram Gustavo via que
nada havia mudado em Lubrín, a não ser, aliás, que o castelo agora tinha uma
rainha, mas mesmo assim, as coisas não mudaram como deveriam. Então o rei caminhando
pelo castelo indo em direção à sala do trono tivera uma idéia que julgou ser
muito boa. Então parou no meio do corredor e ficou olhando para frente, estático
como uma escultura por alguns segundos sorrindo, depois deu meia volta e fora
falar com Sid, o conselheiro-mor, pois o reino passaria por um processo de mudança.
Sid estava na sétima torre, a qual fora
projetada por ele mesmo e logo construída para seus estudos e leituras. As
escadas que davam acesso ao último andar, tinham livros fazendo suporte para os
degraus e havia livros jogados por cima deles também. Alguns empoeirados e esquecidos,
a iluminação era por pedras de luz própria ao que se subia. Nem mesmo Gustavo reconhecia
qual dos livros se, se puxado, abriria uma porta secreta, Sid era cheio delas,
era sua maneira de aparecer ou desaparecer rapidamente.
Neste instante ele visualizava o clima
futuro para fazer um relatório para os coletores das fazendas de Lubrín. Olhando
de novo em suas lentes que davam para o norte, notou uma espécie de neblina um
tanto estranha e anotou em seu caderno. Logo mais investigaria a origem da
neblina. Lá embaixo passos ecoavam correndo, subindo as escadas.
Gustavo chegara abrindo a porta, Sid virou-se
de sua mesa e contemplava aquele sorriso estranho estampado no rosto do rei.
- Majestade... – cumprimentara Sid
levantando-se e ajeitando o capuz açoitando-o para frente, depois fazendo uma
breve reverência com as mãos.
- Meu conselheiro... – disse Gustavo abaixando
a cabeça, respondendo à reverência. – Tenho algo que precisamos discutir e acho
que será uma solução para todo o reinado.
Sid inclinou a cabeça para frente franzindo as
sobrancelhas semi-cerrando os olhos infantis.
- Queira sentar-se, meu rei – falou Sid
puxando-lhe uma cadeira e indo em direção a um armarinho, buscando um bule de
chá, pois notara que a conversa seria demasiadamente longa.
- Bolo de laranja, Sid. Se não estiver em
falta.
- Como quiser, Majestade.
Os
dois sentaram-se na mesa de estudos do conselheiro e trocaram uma conversa
longa. Do lado de fora o sol fulgurava por toda a Lubrín e os sinos da catedral
badalavam duas da tarde.
- Tenho certeza que pode dar certo! – disse
Gustavo com veemência.
- Acredito que seja um processo mágico cauteloso.
Mas está fora de meus conhecimentos, meu rei, não sou nenhum mago ou druida
para ter certeza. Se realmente quiser isso, vai ter que mandar mensageiros para
o Baronato atrás da colina noroeste, que não pertence à Lubrín, pois fora
construída atrás da visão da torre da catedral.
- Eu sei. Mas se der certo, imagine a harmonia
que não se propagará por toda a cidade! – falara apontando janela afora. – Eu
gostaria que minha mãe ainda estivesse viva – falou com pesar.
-Ela era uma feiticeira e tanto, Gustavo. –
dissera Sid colocando sua mão no ombro do rei. - Com certeza suas aptidões mágicas
fariam tudo dar certo. Mas ainda desconfio que depois de sua morte no parto,
ela te dera algum dom mágico, eu não sei.
Gustavo dera outra mordida no bolo.
- Mas o reino precisa passar por mudanças. A
magia dos sinos está minguando, eu sinto isso.
- Você também? Acho que O Rei, seu pai, a
colocou para até quando você crescesse e o reino caísse inteiramente em suas
mãos. Agora Ventura é sua rainha, cabe vocês dois a governar, não obstante,
pode contar comigo para os conselhos. E sei que a harmonia voltará inteira
sobre Lubrín, pois eu também sinto que haja essa fraqueza durante o badalar do
sino.
- Certo – falou o rei olhando para baixo. – Vou
enviar um mensageiro ao baronato, na casa das bruxas. Há alguns druidas por lá,
pelo que sei.
- Sim, há, Majestade. Mas deve ser cauteloso
com essa gente mágica, eles são muito astutos e podem fazer qualquer coisa para
tomar o reino ou toda a sala do tesouro. Você quer realmente fazer isso?
- É para o bem de todos. O sorriso do meio-dia
anda enfraquecendo, a próxima fonte de felicidade será o Castelo, o Castelo de
Vinho, como ele será conhecido – nesse momento seus olhos brilharam e aquele
sorriso mais uma vez perpassou por seu rosto.
- Pois bem, meu rei. Seu desejo é uma ordem. E
assim será. Lubrín voltará a sorrir em todas as horas do dia, sob um odor delicado
de uva. Quer que eu mande imediatamente as cartas?
- Por favor, meu conselheiro-mor.
- Vou mandar uma escolta de oito homens junto
ao mensageiro, ainda não confio no pessoal do baronato, eles são... gananciosos
demais.
- Tenho certeza de que tudo dará certo. Esse
momento será memorável por muitos anos de meu reino, finalmente o meu reino.
Gustavo, rei do Castelo de vinho do feudo de
Lubrín. Esse fora o nome que então passou por sua mente. E não duvido que você
como rei de Lubrín não fizesse o mesmo. Principalmente tendo Ventura como
rainha ao seu lado.
Quando ela recebeu a notícia ficara realmente
feliz, pois tudo que iria mudar era por causa dela, o reinado inteiro se
tornaria um traço de Ventura.
- E quando tudo estiver acabado, Gustavo, quero
uma estátua minha e sua na fonte em que haverá a queda do vinho. Como na hora
de nosso casamento, lembra? Você me segurando e as coroas em nossas cabeças, um
momento antes do beijo. Quero que seja uma estátua gigante e perfeita, vai
ficar lindo e o perfume vai ser o mesmo que na hora de nosso casamento.
- Assim será, Ventura – e deu-lhe um beijo na
testa, ela fechando os olhos.
8
NÓS
DOIS SABEMOS que bruxas e bruxos não são muito confiáveis, são capazes de tudo,
desde a maçã envenenada até a prisão da donzela nas ruínas de um castelo
protegido por um dragão jovem que cospe fogo. Eles têm o rosto amargo e sempre
que sorriem se não de triunfo, falsamente. E raramente te olham nos olhos, a
não ser quando querem te fazer algum feitiço hipnótico ou coisas que nem mesmo
eu imagino, dá calafrios de pensar.
No entanto, no dia seguinte ao que Sid enviara
o mensageiro, dois druidas a cavalo apareceram trajados rusticamente, com chapéus
pretos de grande aba e pontudos. Trajavam sobretudos também pretos ornamentados
com correntes grandes que tilintavam ao que se mexiam, e suas mãos eram cheias
de anéis com gemas.
Eles chegaram à uma rápida velocidade aos
portões de Lubrín.
- Abram os portões, abram os portões –
gritava o mensageiro acompanhado dos bruxos vindo à tona, ao longe, sua escolta
de arqueiros modificava o rumo.
O porteiro abrira o grande portão, rangendo sua
madeira pesada, os três entraram sem reduzir a velocidade passando pelas ruas
de Lubrín pelo lado oeste cortando o centro e depois virando para o sul, onde
as ruas levavam ao castelo.
Os moradores de Lubrín que viram os dois bruxos
seguindo o mensageiro, logo escondiam seu rosto ou passavam depressa para não
haver um contato, essa gente mágica não era bem vista pelos lubrinos, você pode
perceber o motivo.
Atentos, os arqueiros das torres que protegiam
os portões metálicos do castelo se prostraram retesando seus arcos mirando nos
arcanos, porém não foi necessário o disparo, os portões se abriram e eles foram
guiados até a sala do reino. Conforme passavam pelas escadas, soldados que
seriam tomados como estátuas de armaduras de placa completa, seguiam os três,
mais ou menos dez deles. Caminhando pelo corredor de madeira, passando pelos
quadros e esculturas, o mensageiro chegou à sala do trono abrindo as duas
portas de entrada, Sid e Gustavo, que os esperavam sentados um em cada trono,
olharam-nos rapidamente, no canto um pianista tocava algo calmo, este não parou
quando toda a comitiva entrara. Ventura não estava no salão. Os soldados se
alinhavam nas margens do salão voltando a parecer estátuas.
Sid trajava-se diferentemente para a ocasião,
seu capuz era um negro como o breu, que aparentemente soltava uma aura esfumaçada
cinzenta, como se houvesse uma tempestade à caminho nos céus. Vestia dois
colares de proteção contra magias, um deles era rosa, pontiagudo, o outro era
branco e gélido, porém estavam por dentro de sua roupa. Em suas mãos e nas de
Gustavo também, havia anéis de gema mágica.
- Saudações, meu rei... – dissera o mensageiro
fazendo uma reverência se ajoelhando no chão. Os bruxos observavam ao redor.
Gustavo pediu para o mensageiro se levantar e
com um gesto pediu para que os bruxos se aproximassem. Ambos estavam com rostos
austeros, mas sem malícia. Sid os observava atentamente.
- Saudações, feiticeiros de Erlan, o Baronato
atrás da colina – dissera Gustavo.
Eles retiraram os chapéus e fizeram uma reverência,
a moça ergueu a aba da saia, tilintando as correntes fazendo o pianista atrás deles
errar o acorde.
-
Permita-me me apresentar – a moça dera um passo a frente. – Helena da sétima
casa, druida de Erlan, filha de Aline, falecida maga. Espero que o assunto seja
importante – falou olhando para o bruxo ao lado – estou perdendo o chá de bebê
de minha irmã, logo nascerá minha sobrinha, Romera – depois voltou-se para os
olhos de Gustavo. Helena era linda, sua pele branca se destacava nas vestes
pretas, tinha cílios grandes e usava uma maquiagem leve nos olhos, ao que
Gustavo notara. Sid estava quieto observando a cordialidade. Ela soltara uma
risada com uma voz forte, mas breve, voltando ao seu rosto austero. O druida ao
seu lado também rira. Sid e Gustavo trocaram um olhar.
- Sou Demétrio, druida especialista na natureza
– disse o outro druida com uma voz serena. Demétrio tinha o tom de pele escuro,
seus cabelos longos e crespos sobravam
pela borda do chapéu, algumas mechas da franja caiam em seu rosto, ele
fez uma reverência.
- Bem-vindos, bem-vindos, druidas. Creio que
meu mensageiro já tenha adiantado algo sobre o pedido que tenho a vocês, não? –
os druidas acenaram positivamente. – Pois bem, o pedido é o seguinte, queiram se
sentar.
Os quatro sentaram-se e conversaram sob a
música do piano que preenchia o espaço, Sid assumia um ar sério, mas era
bastante diplomático, na maioria das vezes ele se propunha a uma explicação
mais razoável, era muito sábio como creio já ter dito anteriormente. Seus olhos
que nunca envelheciam, perfurava os olhos dos druidas. Não havia nada de mal
neles na verdade, acontece, como eu disse antes, que não são pessoas confiáveis
esses mágicos.
- Ora, ora – disse Helena. – Isso vai custar um
preço e tanto! – falou olhando para Demétrio com meio sorriso. – O que acham de
dezenove mil peças de ouro?
Sid desviara o olhar para Gustavo, este pensava
por um segundo.
- Dezenove mil? E o que acha que vai fazer?
Montar um castelo?
- Ora – disse o druida. - É a felicidade de seu
reino, se não me engano, que está em jogo. E dezenove mil é o que garante a felicidade
minha dela, me parece um preço justo. – falou cruzando as pernas.
- Quatorze mil. Sete para cada. Daria um fortuna
para pelo menos duas gerações de vocês, se quiserem.
- Quatorze...? – falou ela pensando. – É um
processo bastante delicado para tão pouco. Mas hoje estou generosa e não quero
perder mais tempo aqui, ainda há tempo para o chá de bebê, Demétrio?
- Quatorze, Helena? Tem certeza?
Gustavo olhara para Sid. A música no ambiente
tinha um ritmo acelerado.
- Sim. Acho que dezenove é muito para eles –
falou ela numa voz fina.
- Que assim seja? – disse Sid antes que os dois
mudassem de idéia.
- Quatorze mil está ótimo – falou fechando os
olhos. – Vamos então, Demétrio. Nos dêem um mês para estudo, fazer o que vocês
querem é um tanto complicado.
Os quatro levantaram-se. Helena, ao despedir-se
dera a sua mão direita coberta por uma luva de renda para Gustavo beijar. Ele
se inclinou e a beijou.
- Vamos, Helena – disse o druida.
- Meus cavaleiros os acompanham do lado de fora
até os limites de Lubrín.
Assim, os dois saíram. A música parou no salão.
- Ainda tem certeza de tudo isso, majestade?
Tenho um mal pressentimento – falou o conselheiro de frente a Gustavo.
- É para o bem do reino, Sid. Fique calmo – o
rei esboçou um sorriso.
- Ao seu dispor – disse e fez uma reverência
saindo em seguida pelas portas do salão indo até sua torre.
9
UM
MÊS. UM mês é o bastante para muita coisa. O que você e eu não fazemos em um
mês? É possível pintar um quadro simples, emagrecer, aprender um idioma de uma
terra distante, explorar cavernas, engordar, aprender um instrumento, engordar,
fazer uma casinha, céus... muitas coisas podem acontecer num único mês sem que
tenhamos a noção de que o tempo passou de maneira tão rápida, que mal vimos que
engordamos tanto, não é mesmo? Eu sei, eu sei.
Durante quase esse mês inteiro, os druidas não
deram uma notícia sequer sobre como estava indo o processo de mágica. Gustavo,
Sid e Ventura precisavam de notícias. Mas lá pela segunda semana desde que os
bruxos saíram portões à fora, enquanto Rolando o Bobo, bobo da corte fazia
malabarismos aos reis com vinte e três limões e arremessara todos para o alto
no intuito de caírem alinhadas e finalizar o número, houve um baque forte na
janela, quebrando o vidro em estilhaços, fazendo os limões caírem na cabeça de
Rolando. Uma criatura cinzenta com o rosto terrivelmente feio e mal humorado,
os olhos amarelos cintilantes, um sujeitinho pequeno, com asas e feito de material
rochoso chegara girando no ar com uma mensagem nos pés. Ele passou rasante até
o chão no degrau dos tronos gritando com uma voz engasgada.
- Peeeeemita-me apresentaaaar-meee! – gritara
ele com sua voz histérica e aguda.
O rei estava aturdido, espantado.
- Quem é você?
- Aaaaaaaaaaaaaah! – gritara ele estridente como
uma sirene nos dias de hoje causando uma careta de estranheza em todo mundo. -
Exatamente, exatamente. Quem sou eu e o que faço aqui, você me pergunta, embora
não diga, ou não importa se diga ou não, é o que quer que eu fale! Muuuuuuuito
esperto, meu rei! – e desatara a rir mexendo os braços se contorcendo todo.
Gustavo olhara para Ventura e depois para
Rolando que também ria. Fechou os olhos recompondo-se da situação e voltara a
atenção a gárgula à sua frente. É claro que era uma gárgula, voador, rosto
mal-humorado, de pedra, com asas.
- Então...? Veio nos trazer alguma mensagem dos
bruxos?
- Bruxos? No-no-no-no-no-no – falava ele
chacoalhando o indicador. Ele pigarreou. - Sou Vagabundo o mensageiro-gárgula
de Victório o Elfo do norte, da floresta além dos limites de Lubrín e mais uma
vez mesmo que não pergunte eu tenho uma mensagem, é claro, porque eu não ia vir
aqui a passeio, não iria voar e voar, se mexer é chato demais. Sabe uma vez um
tio meu se mexeu tanto e tanto que virou uma coruja e morreu de fome! – fez uma
pausa ficando paralisado. Os demais ficaram olhando-o, mas ele voltara a falar:
- E alguma parte de tudo isso que eu falei pode não ser verdade! Mas cá estou
eu! Vamos ao que interessa: Vocês têm alguma gárgula fêmea? Mentira, mentira –
disse dando uma risadinha gorgolejante meio raspada, pedregosa.
- Diga logo o que tem a dizer! Vamos! – disse
Gustavo com impaciência.
- Hei! Calma, tá bom? Calma – ele retirou um
pergaminho todo amassado de seu pé e o esticara depois leu em voz alta:
“Meu
caro, jovem Rei de Lubrín dos tempos atuais e futuros, dos muitos reinados de
Lubrín que ainda hão de vir, meus cumprimentos, saudações e parabéns, eu posso
dizer. Antes que continue a ler, tire Rolando da sala...” – nisso a gárgula
olhou para o Bobo e apontou para aporta: - chispa!
Ele saiu com os limões na mão, assim que a
porta se fechou, Vagabundo continuou:
“...
Melhor assim, obrigado. Como eu ia dizendo, meus parabéns, é muito agradável
saber que você ama Ventura do fundo de seu coração e eu tenho ótimas notícias
para vocês...”
Ventura olhou para Gustavo, este sentara-se ao
seu lado e pegara em sua mão.
“... e
não vou me demorar a dizer, porque é uma informação importante. No entanto,
desculpem-me pelos atos de Vagabundo, e vocês podem me mandar o custo da janela
de vidro que ele quebrou. Contudo, como eu disse é uma informação importante.
Eu estava mexendo em minhas coisas no alto de meu palácio quando a rocha dos
reis cintilou e vibrou e foi então que eu soube: Vocês terão uma menina!
Ao que a
gárgula lera isso, Ventura virou-se e deu um beijo na boca de Gustavo, ambos
sorriam muito.
“Ela
apareceu na rocha, será a rainha das rainhas, a verdadeira!, com todo o
respeito, é claro, Ventura Daco. E seu nome me fora revelado: Devem chamá-la de
Emily. Ela será a mulher mais linda e mais inteligente que só houve nos tempos
remotos de Lubrín quando eu ainda era moço, mas algo que não sei ao certo vai
acontecer, quando perguntei a rocha o que era, ela simplesmente emanou um
cheiro de vinho e não revelou mais nada... perdão.
Mais uma vez meus cumprimentos, saudações, parabéns e
agradecimentos. Que os ventos lhes entreguem uma boa Era.
“Victório Ghirash, aos seus dispores e ordens.”
- Bem, é
isso! – disse Vagabundo. - Trabalho feito. Agora... onde eu posso me empoleirar
e ficar quietinho até partir? Estou com preguiça de ir-me agora.
- Muito grato, Vagabundo, mensageiro-gárgula.
Seus serviços foram importantes. Pode ficar no topo de meu trono se quiser, mas
sem dizer uma palavra.
- Estáááá certo! – Ele deu um salto e voou até
o topo do espaldar do trono esquerdo, de Gustavo e ficara lá como se fosse
parte da decoração, os olhos que antes brilhavam, agora eram opacos e ele parecia
que nunca mais iria se mexer. E se pudesse nunca mais o faria, também.
O reino de Lubrín já teria uma princesa e não
uma princesa qualquer, ela seria a Rainha das Rainhas como prometido pela
rocha. Agora só seria o momento de esperá-la nascer e revelar a todos a grande
notícia se no terceiro ou quarto mês de gestação ela já não fosse evidente por
si própria, é claro. Naquela noite dentro do castelo, fora servido um banquete
para todos comemorarem. Um banquete mesmo: com porcos assados, perús, saladas
de tomate seco, alface, rúcula, cenoura, pepino, e para beber suco de uva,
laranja, pêssego. Não faltou o vinho e sidra. Sid bebia hidromel com os
beberrões da corte. Pelo salão todos riam e fumavam cachimbos e como se não
bastasse, a janta durou até o anoitecer, e o sino badalou pontualmente no
silêncio repentino e todos voltaram a rir. Todos comeram e ficaram fartos, mas
é claro que reservaram espaço para sobremesa que era de chocolate, também havia
saladas de fruta e bolachas com mel e limão. Houve cantoria e todos brindaram a
notícia da princesa que nasceria.
-Viva! – disseram eles terminando a noite.
10
COMO
VENHO DIZENDO desde provavelmente o início, há histórias que eu só posso contar
mais adiante como o caso da taverna e há coisas que não são contadas aqui, pois
eu ficaria anos escrevendo. Mas também tem aquelas coisas como o momento do
sino que são mágicas que devem ser descritas e que devem perpetuar em seu coração
como está no meu.
As histórias têm coisas significativas
que nos fazem vivenciar momentos que embora nunca tivéssemos a chance de
participar se tornarem reais diante da perspectiva da imaginação. É justamente
por isso que estou narrando essa história. Pelo fato de ter amado Lubrín como
nunca em todo esse trajeto que escrevo para você. Perdoe-me se quiser saber o
que acontece com todos os Lubrinos depois da idéia de Gustavo, muito embora
tenha certeza de que você já tem conjecturas próprias e inclusive está dando os
papéis de mocinhos e vilões àqueles que apresentei aqui. E inclusive não me
espantaria caso você tivesse certo, meu caro.
Neste instante, se eu soubesse o que
ocorreu por lá, eu lhe levaria a um passeio a cavalo até o Baronato de Erlan ao
noroeste de Lubrín, no entanto não posso, justamente porque tenho medo de ir
para lá. É algo de infância, me desculpe. Foi algo que adquiri crescendo dentre
o povo de Lubrín. Mas já que não podemos ir para lá, gostaria de brincar um
pouco com a imaginação na qual demonstraria de maneira muito errada – ou talvez
muito certa – de como é o conselho dos bruxos.
Você pode imaginar a madeira do assoalho
rangendo na casa a cada passo que se dá e portas as quais há muito fechadas,
ainda abrem sozinhas e se fecham com um baque seco levantando poeira e fuligem.
No mais, os cantos são repletos de calangos verde-musgo de tamanhos
inimagináveis. Ao anoitecer dezenas de morcegos ficam dependurados na armação
do teto tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Ou pior ainda, eles
podem estar voando.
E muito provavelmente durante esse mês
todo que Gustavo viera aguardando, havia uma luz de uma vela oscilando nas
madrugadas causando um clima tenso naquelas redondezas. E também muito
provavelmente vociferações e tentativas de feitiços em conjurações hediondas e
malignas em voz alta, que acordavam os ratos dentro de suas tocas dentro da
casa. Imagine você acordando com gritos numa língua desconhecida! É melhor eu
parar de falar disso por aqui, já está me dando calafrios.
Mas o fato é que durante todo esse mês,
por coincidência ou não, nuvens escuras vinham do noroeste e corvos de
movimentavam com mais freqüência se empoleirando nas caixas de correios das pessoas.
Dezenas de pássaros pretos circulando os ares vindos do noroeste rodeando
Lubrín, rodeando a torre do Sino da Catedral.
Ainda em segredo, Gustavo e Sid estavam
apreensivos com o badalar de sinos que não tinham o mesmo efeito de outrora, é
claro que ainda aquele sorriso perpassando o rosto das pessoas, mas ele passou
a ser duvidoso e não mais com a mesma sinceridade. Não haveria Lubrín sem
alegria. Aliás, houve como vocês verão caso continuem lendo, mas nada disso é
bom, pois as memórias desse lugar são de risadas, cachimbos e bebidas, pessoas
sorrindo, namorados nas praças. As pessoas vivendo felizes com suas vendas,
burgueses trocando moedas com outros burgueses; algum mal-caráter roubando
certa barraquinha de roupas no fim da rua e depois correndo de fugindo do dono
da loja; o alaúde sendo tocado por alguma amador contador de histórias; o
antigo badalar da catedral ressoando e preenchendo o silêncio matinal. Ah, isso
que é um reino, diziam todos.
Você provavelmente sabe do que estou
falando, daquela paz interior onde seu dia está bom, quando o sol se pronuncia
alto sem nuvens ao céu e uma inspiração passa por seu corpo todo e tudo passa a
dar certo. Os tempos em Lubrín eram a maioria assim, mas como você já sabe de
tanto eu dizer como lubrino... Não se pode confiar em bruxos, pois o que eles
fizeram para se aproveitar do que Gustavo havia pensado é algo que nesse tempo
fora imperdoável, mas é claro que não havia maneira de provar, pois eles foram
muito astutos e nem mesmo a sabedoria de Sid podia prever tal caso.
Como logo no início eu citei isso tudo é
provavelmente é a pior coisa que eu posso contar-lhe, isto é, o que vem a seguir.
Eu precisei dizer-lhes tudo isso, ter essa conversa você e eu para aceitarmos
os fatos, mas chega. Um mês de corvos, vociferações, relâmpagos e outras luzes
estranhas e nuvens escuras no noroeste é demais para mim, está no momento de
encarar o que houve depois de um mês que à cavalo os bruxos chegaram em Lubrín
e saíram com uma promessa. E essa é uma história que pode e deve ser contada
aqui, assim como tudo que veio atrás e vem a frente.
11
DO
NOROESTE ERGUIA-SE uma cortina densa de nuvens, que logo se espalhara sobre a
região de Lubrín e mais além, tornando tudo cada vez mais cinzento. O sol
prostrava-se pálido por trás de uma pequena camada de nuvem branca. Logo, os
relâmpagos começavam a dançar por dentre elas, fazendo por vezes barulhos
hediondos.
Logo pela manhã como nos dias de chuva era
comum, Sid, o rei e agora também Ventura sentavam-se ao pé da lareira, com uma
luz de tochas. Havia chá quente na mesa, uma garrafa de vinho, daquele dos Daco
e no consolo da lareira, Sid depositara um livro. Iria ler para os reis, pois
uma chuva se aproximava.
- Hoje completa um mês desde que os druidas nos
prometeram retorno, majestade – dissera Sid, com a xícara a caminho da boca.
Ventura de pernas cruzadas, o saiote longo, mas
leve, com forro branco terminando com uma renda detalhada. Olhara para o rei
que a segurava com o braço direito.
- Hoje será a cerimônia?
- Sim, meu bem. Creio que será hoje – disse
olhando para Sid, depois virando o rosto para ela.
- O tempo está propício para eles, meus reis.
Não são pessoas confiáveis, vocês sabem. Devem deixar vários guardas de olhos
bem abertos. Reservei os adereços de proteção para nós. Uma sombra passa em
meus pensamentos, há alguma coisa de errado, algo me diz isso – disse Sid.
- Lubrín jamais fora tão cinzenta e escura. Só
eu notei que os sons dos sinos já não ecoam mais como antigamente? – falou
Ventura. Sid e Gustavo olharam para ela.
- Então já é algo evidente? – disse o rei. –
Estávamos esperando alguma declaração sua, na hora certa, para termos certeza.
É por isso que precisamos do ritual!
Sid mantivera-se quieto, em seus pensamentos
algo estaria fora dos eixos.
Uma trovoada ecoou do lado de fora. Por Lubrín,
cachorros latiam para a “criatura-céu” que arrebentava trovões e rajadas. As
pessoas reuniam-se dentro de seus lares perto da lareira, ou mais perto do fogo
mais próximo. A família Daco, agora em sua nova casa – a qual falarei depois
como eles ficaram-, bebiam vinho quente com gengibre, mas de mesma forma, não
conseguiam sorrir.
Rumores sobre o rei ter se convertido à
bruxaria estavam nascendo nos bairros mais supersticiosos. Acreditavam que os
druidas teriam acesso ao reino e os mais exagerados diziam que tentariam tomar
o trono, mas é claro que não é nada disso. Porém, os lubrínos tinham motivos
para crer em tal coisa. Aquele som belo de hora em hora, era seco e sem vida,
com a alegria de uma lua minguante. Não. Com a tristeza de uma lua nova.
- E o que pretende fazer finalmente – disse
Ventura. – Acho que já é hora de me contar.
O conselheiro olhara para Gustavo, este se
ajeitara e tomara as mãos delas em suas e começara a contar:
- Por talvez um século a antiga Lubrín de Sinos
vem sendo iluminada por um encanto de meu pai. Ele, junto com Rolando encantaram
os sinos da catedral para trazer alegria ao nosso povo. Os sinos viraram
sinônimo de sorrir. O sorriso era freqüente, mas agora, como você disse...
Parece tudo diferente – ele assumira um olhar de pesar. Seus pensamentos
voltavam para seu pai e um luto que nunca tivera antes, agora o tomava. Uma
leve chuva começou do lado de fora.
- Encanto? – perguntara ela.
Gustavo olhara para Sid e este pusera a recitar
com uma voz soturna.
Para
todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido,
Uma
alegria viria comigo, uma memória de um amigo
Altas
risadas com o cachimbo no alto da colina,
Menos
uma hora do dia, uma a mais de cantoria
Os
sinos resplandecem seu calor
A
bebida cai em meu colo
Uma
bebida a mais na noite
Um
badalar a menos na vida
Para
todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido
Um
casal teria um filho, um diário seria escrito
Um
choro no meio da noite da criança
Uma
lembrança de uma infância
Para
todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido
Uma
reunião de companheiros na taverna violão-partido
Uma
música de porto na gaita com os amigos
Mais
bebida, acenda o cachimbo, mais uma música além das colinas
Para
todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido,
Uma
alegria viria comigo, uma memória de um amigo
Altas
risadas com o cachimbo no alto da colina,
Menos
uma hora do dia, uma a mais de cantoria
- Que lindo! – dissera Ventura, seus olhos
agora tinham outro brilho.
- Sim. Mas não há mais sentido nisso tudo, os
tempos são outros agora, por isso minha mudança. O que quero fazer e tornar o
vinho símbolo de Lubrín e finalmente poderemos ter o Castelo de Vinho.
- E no que isso pode ajudar, Gustavo?
Sid tomava seu chá quieto, olhando para a manhã
escura do lado de fora, a chuva caindo fina e lenta.
- O odor do seu vinho, minha rainha, este
passará a preencher todas as casas, haverá uma enorme fonte no castelo com a
qual colocaremos aquela estátua que você pediu. No entanto, as uvas apenas
crescerão dentro do castelo todas as estações do ano, todos os dias do mês. E a
alegria voltará às ruas de Lubrín. Não haverá mais tempos tristes por aqui
enquanto formos reis, enquanto eu for vivo!
Nisso, alguém bateu na porta.
- Entre! –disse Gustavo.
- Majestade – dissera o guarda real. – Os
druidas chegaram.
- Diga-lhes que esperem. Já vamos descer.
- Venham meus reis. Vou buscar as proteções –
dissera Sid.
***
Ao que os três desceram depararam-se com
Demétrio e Helena e um homem que carregava uma enorme arca nas costas. O
sujeito era corcunda e já devia fazer isso a anos. Sid teve a certeza de ver
marcas de tortura em suas mãos, mas logo notou que eram calos grossos e
rachados. Estavam os três vestidos de branco, com uma capa de chuva de couro
cobrindo-lhes. Eles as despiram e acompanharam-nos até o palácio real, onde
seria feito o ritual. Do lado de fora a chuva já estava mais densa e pesada,
mal dava para se escutar com o barulho da chuva martelando o chão e os telhados
das casas.
- Onde estão todas as uvas que pedimos? –
perguntara Demetrio.
- Estão todas ali – dissera Gustavo apontando
para um enorme monte de uvas claras e escuras, grandes e pequenas. Muitas uvas
para dois anos. Um monte verdadeiramente imenso.
Os bruxos aproximaram-se maravilhados. O ser –
como Sid passara a denominar mentalmente o corcunda, que já a essa altura
depois de ter balbuciado algo estranho e agir de maneira diferente, já duvidava
que podia ser um humano, ou ao menos um humano normal – abrira a arca e Helena
começara a retirar os materiais de rito. Haviam livros velhos, enormes,
grimórios e pergaminhos longos. Retiraram também, velas brancas e sementes. Com
elas fizeram um círculo em volta do monte de uvas e acenderam as velas.
A chuva caia pesadamente do lado de fora e
relâmpagos hediondos criticavam a terra. Houve clarões e roncos estranhos.
Empoleirados por diversos lugares de Lubrín, corvos grasnavam e protestavam,
molhados, e negros como uma noite que dormia sem acender o abajur de estrelas.
No entanto, no meio do ritual, algo que não
estava nos planos nem de Gustavo, que assistia pasmo tudo aquilo, ou Sid, que
estava atento e apreensivo segurando seu colar na mão, Ventura que abraçava o
rei enquanto ouvia aquelas conjurações que pareciam vozes de ventos, ou até
mesmo de Demétrio que fazia o ritual e de Helena, do topo, uma única uva se
desprendeu, rolou e rolou por dentre as demais uvas, e veio caindo aos poucos,
como que se fugisse do ritual que ali acontecia, rolava pelo enorme monte como
uma pedra numa montanha, descia, mas ninguém a viu, ninguém. Porém...
Porém ao que o ritual finalizou-se com sua
última palavra de encanto, a uva tocara o chão e assumira uma coloração muito
escura que chamara a atenção de Demétrio, depois clareou-se como pérola e ele
caminhou até ela e fez como se fosse parte do ritual, agachou-se numa
reverência ao monte de uvas e pegou escondido aquela única uva e a guardara em
no bolso de seu sobretudo branco.
“Uma uva esperta... Minha uva esperta... A Uva
esperta”, pensara ele sorrindo por dentro.
E
foi assim que Lubrín de Sinos tornara-se a Lubrín do Castelo de Vinho, como
disse logo no início de tudo e tão logo a novidade fora espalhada por todo o
reino. O cheiro se propagou pelas ruas e as decorações passaram a mudar, as
roupagens passaram a ser diferentes, os quadros e livros falavam das uvas como
algo surpreendente, deuses dos vinhos passaram a ser venerados e a alegria
perpetuava novamente depois daquele dia escuro de chuva... mas algo intrigava
Demétrio que guardava aquela uva. “Uma uva muito esperta”.