╡CAPÍTULO QUATRO╞ AFINAL, QUEM VOCÊ PENSA QUE É?



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GUSTAVO II JÁ TINHA quinze anos. Tanto tempo se passara desde que descobriram que ele não era Emily, que Victorio achou que a rocha dos reis estava mentindo, começando a delirar de tão velha e empoeirada, guardada junto às antiguidades mágicas do castelo do Elfo, pois essas coisas podem acontecer com artefatos mágicos, eles simplesmente deliram como se fossem um mago muito velho que sabe tanto, tanto, que mal consegue dizer aquilo que sabe e todos acabam por chamar o coitado de louco.
Logo após aquele momento em que a parteira vira a surpresinha em Emily (isto é, naquele bebê), Gustavo ficara enaltecido, dissera que tudo era culpa da parteira, pois tinha que nascer uma garotinha dali, e ela se chamaria Emily e seria a Rainha das Rainhas, sua filha. Mas não. Nada disso se sucedeu. Então, deram o nome para o garoto o nome do pai, mas Júnior não seria um nome para alguém da realeza, então chamaram o príncipe de Gustavo II.
Você pode imaginar o reboliço total pela cidade, pois todos os boatos afirmavam que das entranhas de Ventura, nasceria uma garotinha. Naquele dia, a notícia correu tão rápido, que enquanto você lia o que aconteceu, ela se espalhou por todo o território, até onde os olhos alcançavam a partir da torre da catedral e mais adiante, em um minuto.
O fazendeiro colhendo milho fresco da espiga lá pelo norte já sabia da notícia. Pelo noroeste – apesar de não ser mais Lubrín -, os bruxos escrevendo em pergaminhos logo já souberam.
- Eu disse, não disse? – falou um velho deixando pingar tinta preta de sua pena na mesa. A barba branca rala no queixo, o cocuruto calvo e cheio de pintas salientes. – Eles não sabem de nada.
Victorio ficara sabendo da notícia e logo foi em vão em busca de uma resposta da rocha, recitara encantamentos, mas ela permaneceu ali, cinzenta, como, como uma TV fora da tomada, sem qualquer resposta. Álvaro, O Baixo – que você ainda não sabe o suficiente para ter noção do tipo de figura que essa pessoa é, mas que logo tem participação vital nessa história – fora em busca de pesquisas pelos horizontes, procurando alguma resposta, pois, afinal de contas, ele teria que pintá-la no melhor quadro, seria sua melhor obra algum dia. Tinha certeza disso.

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CÉUS, HÁ TANTO para se contar que fico perdido diante dos fatos. Gustavo II já com quinze anos e nem sequer falei dele, você apenas conhece o nome do sujeito e mal sabe a cor de seus olhos. As coisas aconteceram tão depressa que mal sobrou tempo. Sem falar que ainda temos que procurar Emily – se é que ela existe – e para isso, o rei, isto é, Gustavo I, teve uma idéia mirabolante, um tanto egoísta, que como você viu, preocupou Ventura – e devia mesmo preocupá-la se soubesse no que isso acarretou mais tarde, o que é claro, a pobre coitada não tinha noção que aconteceria. Mas por ora, vamos deixar de lado isso tudo – mas, por favor, não esquecer -, para que eu possa apresentá-lo finalmente, o filho de Ventura e Gustavo I, Gustavo II, o mais novo príncipe.
Quando nascera, depois de perder o rosto de joelho que os recém nascidos têm (nem mesmo os príncipes se safam dessa), Gustavo II foi adquirindo traços do pai, que insistia em dizer que havia os traços do avô, o que não mudava tanto, pois Gustavo I era o Rei da Lubrín de Sinos escrito. Todavia, conforme os anos se passaram, ele foi adquirindo os traços de Ventura. Não que ele tivesse traços femininos, mas aquela segurança nos olhos foi surgindo, a mesma que ela usava para ler através dos globos oculares, se desenvolvendo conforme os anos se passavam. Os cabelos eram de seu pai, castanhos. A boca, olhos, orelhas, nariz, queixo, eram todos de Ventura, ou ao menos era o que a maioria falava.
Quando completou três anos de idade, Gustavo II já fora posto da na escola. Em um ano aprendeu a juntar vogais com consoantes e formar palavras pequenas, de fácil distinção, R-E-I, M-E-L, P-A-I, era bastante inteligente, fazia somas altas, 10+10, 10+5, 15+3, e gostava de brincar no piano de miniatura.
Conforme foi crescendo, foi mostrando grande habilidade com história, tinha uma memória fantástica: Ano de 325, depois da crise econômica, os bruxos se afastaram para a região noroeste; A batalha entre os dois heróis no palácio real decidiu se o mago iria ou não para  forca acusado de bruxaria, os julgamentos eram através de batalhas; Rei da Lubrín de Sinos, morto por saqueadores enquanto se aventurava pelos arredores da região do castelo, ainda não se há notícias de quem o teria matado ou o porquê, O Rei não tinha inimigos.
Já com doze anos, com uma beleza admirável, era bom em identificar magia, artefatos mágicos, lia e falava um pouco da linguagem de Victório o elfo, lecionada por Sid, que ainda mantinha a mesma cautela que tivera quando teve de ensinar seu pai, Gustavo I, sobre a cobrança de impostos, história, geografia, magia e alguns conhecimentos da natureza, como a previsão do tempo épocas de alta safra.
Porém, agora com quinze anos, estudava assiduamente, mostrando-se grande competente com o reinado, inclusive fazendo aulas de campo e reformando leis e normas – junto a Sid, é claro - as quais, para ele, não havia sentido para que existissem e prolongassem por mais uma geração.
Nesse exato instante, três da tarde, com o sol ardendo no fim de seu ápice pela janela da sala de aula, que ficava na terceira-sul, o príncipe estava na aula de idioma, a qual estava um tédio, a mão no queixo, a bochecha fechando o olho, pois tinha de ouvir o professor recitar textos longos com uma voz amargurada. Logo, a porta abriu-se e o rei pôs a cabeça para dentro da sala pedindo licença para Gustavo poder ir embora.
- Sobre o que quer falar comigo, pai? – perguntou ele pela quinta vez, montado no cavalo a frente de seu pai, que conduzia o animal.
- Quando chegarmos eu te digo, filho, não insista. Se eu disser aqui, alguém poderá ouvir antes da hora e não quero problemas- respondeu ele com uma voz soturna, que Gustavo II não compreendera.
Eles passaram pelos portões do Castelo de Vinho e seguiram pela trilha de entrada – aquela que apresentei para você logo no início. Eles desceram ali, e Dário já de prontidão fora cuidar do cavalo.
- Obrigado, Dário.
- Às suas ordens, meu rei.
Os dois Gustavos entraram no castelo e subiram as escadas. O Gustavo pai, mantinha o rosto severo, o que fazia com que o filho buscasse na memória qualquer coisa que teria aprontado com o Bobo na noite anterior antes de dormir, tirando a bomba de cola mágica que eles trocaram pelo xampu do cozinheiro, que se apertava o esguicho e voava cola para todos os lados, mas ele sabia que o cozinheiro sabia o feitiço para desfazer o truque. Então, se não fora a bomba de cola, o que seu pai gostaria tanto de lhe dizer, conduzindo-o até a sala do trono? A dúvida o deixava apreensivo.
Eles chegaram na sala do trono, então Gustavo I pediu para que seu filho ficasse em pé a frente do trono, enquanto ele sentava-se, pegando o cetro. No que vislumbrou seu filho, Gustavo foi surpreendido por uma súbita emoção, que desmanchou qualquer severidade que houvesse em sua face. Ele fitou seu filho, ali em pé, com quinze anos, de traje de estudante, alto como O Rei de Sinos, seu pai, de feições tão descritivas. Viu-se diante de si mesmo, na mesma época em que recebera a notícia que seu pai houvera sido assassinado. Seus olhos começaram a lacrimejar, e ele não agüentou e desatara num choro calmo, sem muitos soluços, tampando os olhos com a mão direita, segurando seu cetro dourado com uma uva na ponta, com a outra mão, lembrando-se daquele dia, o rosto tão inocente quanto ao de seu filho. Agora notava como eram muito parecidos, e que aquelas feições de nada tinham a ver com Ventura, era ele diante de um espelho, era ele parado lá naquele mesmo lugar, diante de Sid, quando recebera a trágica notícia.
 A emoção súbita fora dissipando-se, e as lágrimas cessando, voltando a circunstância atual, e notando novamente que as feições de Gustavo II, seu filho, eram mesmo parecidas com da rainha, esquecendo por um instante tudo o que acontecera em sua difícil infância, na mesma idade de seu filho.
- Papai...? Está tudo bem? Quer que eu chame alguém?
- Está tudo bem, meu filho, está tudo bem. Foi só... Uma coisa que me pegou de surpresa, está tudo bem... – dissera seu pai limpando as lágrimas com as mangas compridas – fizera uma pausa, a qual pôde-se ouvir os animais do zoológico do lado de fora, emitindo seus sons. – Agora, tenho que te contar uma coisa – dissera ele finalmente.
Então, Gustavo I, contara todo o reboliço causado pela Rocha dos Reis, prevista por Victório, e de como era esperado que Gustavo II nascesse uma garota, Emily, a Rainha Verdadeira, e de como a pedra nunca mentira antes.
- Mas é claro que nunca beijei ninguém na boca, pai!- exclamara o príncipe depois da pergunta de Gustavo I. – Sei bem das leis de herança do trono, posso recitá-las por ordem cronológica, alfabética ou numérica se quiser. Jamais comprometeria o trono antes do tempo beijando alguma garota na boca, sei que isso sela a princesa do trono na próxima geração. Mas... por que a pergunta?
- Pois temos que achar A Rainha Verdadeira, para que a promessa se cumpra. Você terá ao seu lado a fantástica Emily, a Rainha Verdadeira da Lubrín do Castelo de Vinho, a Raínha de Lubrín!
Ao contrário do esperado, Gustavo II não sentiu-se infeliz de que teria uma moça o acompanhando, não sentira o peso da responsabilidade que Ventura, muito preocupada, achara que iria sentir. Parecia que a profecia estava MESMO se cumprindo, e que era o destino de Gustavo II encontrar Emily, a Rainha Verdadeira, a Rainha de Lubrín.
- Mas, pai, como iremos achá-la?
Seu pai abrira um sorriso e lhe contou como.

4

PASSANDO PELAS RUAS da primeira-leste, um sujeito tão jovem quanto Gustavo II, louro, com sapatos gastos, levava cartas de casa em casa, já estava com o nariz vermelho de tanto andar ao sol, havia uma boina em sua cabeça de aba curta, as mãos pretas de tanto abrir e fechar caixas de correio deixava marcas de seus dedos nas cartas, sem falar o peso nas costas de tanto papel para carregar. A sorte desse garoto, é que nesse momento, passava um grupo de amigos pela rua, seis deles.
- Hei, pessoal! – dissera tirando a alça da bolsa do ombro e a colocando no chão. – Querem me ajudar? Tenho um monte de cartas para levar para lá e para cá. Aparentemente uma em cada casa de Lubrín, já é onze e meia, e estou exausto de tanto andar. E mal cheguei na metade.
- Ah, acho que num dá, Fred! A gente vai jogar queimada na minha casa e...
- Eu divido todo o dinheiro com vocês – implorara ele abrindo um sorriso. – E olhe que são muitas peças, muitas mesmo. Estão me pagando dez vezes o normal para levar tudo isso.
Os garotos trocaram olhares, Fred abriu ainda mais seu sorriso, erguendo a sobrancelha.
- Me dá essas cartas aí – disse um dos garotos, e os outros o acompanhou.
 Todas as casas dentro dos limites de Lubrín receberam as cartas. No fim do dia, os garotos estavam mais que exaustos, mas cheios de moedas em sacos de pano, sacos realmente recheados. Uma recompensa pelo dia de trabalho.
- Olhem só isso. Estamos ricos! Acho que vou comprar uma espada com esse dinheiro!
- Não seja tonto, a gente não pode comprar uma espada, é só para os mais velhos.
- E quem disse que vou comprar agora, idiota, vou guardar o dinheiro até lá, né?
- Eu duvido que você consiga, vai encher a pança de tanto sorvete que vai explodir.
- Eu não sou você!
- Ah... – fizera uma grande pausa. - Seu panaca – completou ele dando um murrinho no braço de seu amigo, e todos riram, sentados na calçada, o crepúsculo tingindo o mundo de vermelho, as primeiras estrelas surgindo, iluminando a gloriosa Lubrín.
Anos mais tarde, mas ainda lá no passado, houve uma história – que não se conta aqui- heróica sobre esses garotos. Todos eles fizeram um pacto de que na verdade nenhum deles gastaria o dinheiro e comprariam suas espadas, o que era uma idéia, em suas mentes, para apenas brincar, mas aconteceu que com o equipamento, eles resolveram viajar juntos para além dos arredores de Lubrín, muito além de onde a Torre da Catedral poderia ser cogitada e muito além mesmo, inclusive. Aventuraram-se pelas colinas e salvaram pessoas de perigos e de criaturas que jamais acharam que veriam fora das histórias dos livros e que duvidavam que existissem. Mas isso é o máximo que posso contar por aqui, se não deixamos Lubrín de lado e há ainda muito que contar.
Não tão rápido quanto os rumores, mas rápido o bastante para chegar ao ouvido de todas as pessoas, todo mundo soube que haveria uma grande festa no Palácio de Vinho do castelo, mas como Gustavo I queria, ninguém soubera exatamente o motivo da festa, exceto os que já sabiam da profecia, o que incluía o príncipe, Victório, Álvaro o Baixo – essa curiosa pessoa, que não pôde comparecer à festa -, Ventura, o Bobo e Sid. 
Então, as pessoas que tinham desconfianças começaram a elaborar os próprios motivos para que houvesse tão grande festa, mas nenhum deles sequer chegou perto.
É claro, como eu disse, que pessoas dentro dos limites da região, também receberam cartas – Gustavo I estava realmente disposto que todos presenciassem aquele momento histórico, que no fundo, fazia mais em nome de seu pai, O Rei de Sinos, do que para si mesmo. Assim, como até mesmo pessoas de fora de Lubrín souberam, os bruxos, é claro, não ficaram desinformados. Na verdade, com ou sem cartas, eles estariam informados sobre as coisas que aconteciam naquela cidade.
- Então eles darão uma festa? – pensou Helena consigo mesma, que estava vestindo-se para ir dormir, havia acabado de sair do banho e seus cabelos estavam molhados, a carta estava aberta em cima de sua penteadeira. – Aposto que há alguma coisa por trás disso, mas o que?
E seus pensamentos não pararam por aí. Lembrou-se ela que Gustavo II, o príncipe, estaria na festa, e sua mente já começou a titubear. Helena era muito esperta, astuta, seria o conceito certo para o tipo de personalidade dela, lera milhares de livros ao longo de sua vida, o que a tornou muito inteligente e capaz de artimanhas inimagináveis com suas feitiçarias, era uma pena que seu coração fosse tão duro, creio eu, como lubrino, que isso está no sangue dos bruxos, esse aspecto de querer o bem para si próprio, e fazer o que puder para obter as coisas, sem se preocupar com os outros... De repente, um nome veio até sua cabeça:
- Romera... – sussurrara ela para o espelho, e esboçou um rosto de triunfo.

***

Na véspera da festa o movimento era terrível pelas vias, ruas, becos, lojas de roupas, flores, jóias e praças da cidade. Estavam todos pelo menos três horas adiantados, vestidos, bem ornamentados. Mas uma coisa que não podia faltar para Romera, pensou Helena, era sua beleza. E tão logo já providenciara para que ela fosse a garota mais atraente de todas, para, quem sabe, conseguir chamar a atenção do herdeiro do trono na festa... Se ela conseguisse que ao menos Romera fosse notada...
Romera... Este é um nome que se sua memória não falha, você já ouviu aqui nesta mesma história há anos atrás (se me permite engrenar sua cabeça inteligente), no dia o qual os bruxos reuniram-se no salão junto a Sid e Gustavo I, para negociar o feitiço das uvas. Depois de todos esses anos, Romera já se tornara moça, ia fazer dezessete anos de idade e era linda, alta para uma garota de sua idade, cabelos negros que iam até depois da cintura, lisos, de um brilhante prateado, magra, com cintura marcada e de um rosto maravilhoso, moldado, cujos olhos eram grandes, mas não exageradamente, é claro, e tinha uma pele bronzeada.
Neste momento, antes da festa, cobrindo-lhe o rosto, havia um véu transparente, e seu vestido preto, combinando com seus cabelos e maquiagem, e suas mangas longas que eram inteiras de renda, com flores desenhadas e por falar nisso, em seu chapéu, do qual caia o véu, havia uma rosa de um vermelho-rubi, porém fosco. Usava sapatos de salto baixo, pois já era alta o suficiente. Da fina cintura, caía os babados negros da saia do vestido, que cobria-lhe até os tornozelos. Bastava olhá-la e sabia-se sem sombra de dúvidas que ela viera da vila dos bruxos ao noroeste de Lubrín, uma dama da noite.
O toque principal era de Helena, que fizera-lhe a maquiagem toda com pó-da-beleza, batom-do-sorriso-perfeito, sombras-que-provocam-olhares, e um segredinho, no brilho em torno da pele com um pó brilhante que ela mesma fizera.
- Romera... Como você está linda! – dissera Helena girando-a pela mão, a saia do vestido rodando.
Romera abrira um doce sorriso, inclinando o rosto, estava esplêndida.
- Obrigada! – dissera ela.

5

QUE EU ME lembre jamais existiu festa igual a essa e por esse motivo dentro de Lubrín, mesmo depois dessa história que conto a você ou qualquer outra que tenha vindo antes. Mas vamos nos juntar aos convidados dentro do palácio de vinho, não fique aí parado. Pegue uma taça, pois todos devem ter uma em mãos, como dizem os bons costumes, e venha se juntar aos lubrinos e cuidado para não dizer nenhuma besteira. E fique um pouco longe daquele canto ali, os bruxos estão por lá, e adoram uma conversa fiada.
Eis este lugar que ainda não apresentei tão detalhadamente. Creio que tudo o que você sabe é que existe uma grande estátua e uma fonte de vinho, exalando felicidade para toda a cidade. Mas estas coisas ficam bem no alto do palácio e no dia de hoje está coberta por precaução, por causa dos bruxos – coisa que apenas os lubrinos irão entender, eu acho. Porém, aqui embaixo é tudo muito lustroso.
Ao redor do palácio inteiro, circular, existe uma grande galeria, para pessoas sentarem e avistarem tudo por inteiro, o que acontece na parte de baixo, principalmente quando há alguma orquestra tocando, como era mais comum antigamente. Para sustentar a galeria, existem colunas sofisticadas, ornamentadas com vinhas de ouro e uvas de prata, com folhas de bronze. As janelas todas com cortinas duplas: à esquerda, sempre o sino em lembrança aos antigos tempos; à direita, os cachos de uva. O chão... olhe só esse chão, nos reflete por inteiro, é essa cor que não se sabe se é dourado ou se é vinho, como se houvesse muito vinho no chão – mais uma vez uma das façanhas de Sid, brincando com espelhos. A sorte é que os saiotes das damas tem forro ou são compridos demais. Por outro lado, o teto, é revestido com as vinhas e com cachos de sino, dos sinos, a luz para dar vida a tudo, coisa que Gustavo devia a Ventura, pela grande idéia de manter os costumes do antigo rei, o qual, ao ouvir histórias (que não se contam aqui, todas elas ao menos), ela deu muita credibilidade e honra. As paredes, abaixo do piso da galeria, eram decoradas por quadros de pessoas importantes, heróis de guerra, hilários bobos da corte que deram marco na história do castelo, até mesmo os ladrões e homens maus tinham crédito para tais quadros, reis que nem mesmo O Rei da Lubrín de Sinos chegara a ver, entre estátuas de armaduras, que não se sabia se eram guardas mesmo ou apenas as placas montadas. E muitas, muitas mesas no meio das pessoas, com guloseimas deliciosas para você e eu aproveitarmos. E por último, mas não menos importante, na parte norte do salão, isto é, de frente para a porta dupla de entrada, estava um acima de um degrau, um trono de pedra, ferro, ouro, prata, e lascas de cristal confortavelmente forrado para Gustavo sentar-se. É claro que em volta do trono tem uma cerca revestida e protegida por guardas portando lanças de longas hastes e escudos grandes de metal reforçado, no interior da cerca, Gustavo olhando para todos e se servindo constantemente de petiscos servidos pelos seus criados, em sua cabeça sua coroa resplandecia suavemente.
E aposto como você já não foi a uma festa recheada de pessoas de tudo quanto é tipo. Pois é. Em Lubrín não é diferente. Desde homens barrigudos que querem mais bebida, crianças correndo com brinquedos – que diga-se de passagem foram confeccionados por Sid-, mulheres velhas de rosto amargo e as moças lindas, ah as moças... Muito esperto fora o rei. Todas as moças estavam lá, todas dentro das regiões de Lubrín, onde as cartas chegaram. Ora, se o badalo não vem aos ouvidos, os ouvidos que vão ao badalo!, como se dizia antigamente. Então, se a profecia era mesmo verdade e Victorio junto ao corriqueiro Álvaro, o Baixo não viu coisa, ou a pedra não estiver gagá, Emily tem que estar dentre elas. Mas qual delas, Gustavo II se perguntava, dentre mais de mil garotas, seria Emily? Seu pai estava certo de que ela o encontraria, quem sabe, talvez, antes que ele a encontrasse.
Se observar bem, vai notar como ele está preocupado olhando para todos os lugares, mas não olhe muito, pode deixá-lo constrangido. Agora, vou deixá-lo só, pois há muito o que se fazer por aqui.
A festa estava muito cheia. Segundo Dário, que vigiava a porta havia quase quatro mil pessoas, as quais oitocentos e oitenta e oito eram homens, novecentos e setenta e cinco eram mulheres adultas, trezentos e sete eram crianças, quinhentos e quatorze rapazes e moças em casais na faixa de dezessete e vinte e seis anos, e mil e quarenta e sete moças, as quais uma era a Emily esperada.
              Você se pergunta, por que o rei não convidou apenas as Emilys de Lubrín para participar da festa, e as respostas são as seguintes. Primeiro, iria causar alarde demais, os bruxos saberiam de tudo e buscariam a resposta, fariam boatos que correriam para lá do alcance; e segundo, porque assim, a profecia não se cumpriria como deveria se cumprir uma profecia. E então nenhum nome foi assinado para entrar na festa, Gustavo I queria ver as coisas acontecerem.
               Já era a oitava vez que Romera parava na frente do trono de Gustavo e não era a primeira que ele a olhava com um sorriso no rosto. Quando ele fazia isso, ela abaixava a cabeça, como que se estivesse constrangida, olhando-o por baixo, abria um sorriso e saia, olhando-o de canto, então ele se ajeitava e ficava olhando-a partir. Até agora, nada de Emily e mal sabia ele o nome das moças.
             E eram tantas moças, que deixava-o perdido, ansioso e toda hora olhava para o pai, muito mais nervoso que ele mesmo, que fingia não estar olhando-o lá de cima da galeria, para ver se algo acontecia.
           - Já basta – dissera o rei, por tanta demora.
           - Espere mais um tempo, Gustavo! – disse-lhe ventura.
           - Não consigo mais. Meu filho vai ter sua rainha agora mesmo.
         - Devo fazerr ash honrrash, Gushtav? – perguntara Victorio, em seu sotaque ,muito parecido com o nosso francês, tirando sua longa madeixa negra no rosto, revelando seu belo rosto élfico, abrindo um sorriso.

6

A ALGAZARRA ERA geral pelo palácio, a conversa ultrapassava os limites, parecia a torcida de um jogo de futebol, tirando o fato de que os lubrinos não estavam torcendo, mas gargalhando, embriagando-se, falando cada vez mais alto, chegaria a ser insuportável ficar lá dentro por mais uma hora. Notando isso, Victório aproximou-se da beira da galeria e pigarreou. Mas é claro que ninguém o escutou. Tentou de novo e parece que surtiu efeito contrário, o barulho elevou-se. Ergueu as finas sobrancelhas negras, e tirou do bolso interior de seu robe verde ornado com linhas douradas um diapasão para afinar violino. Não questione caro leitor, os elfos sabem bem o que fazem, e podem nos surpreender sempre quando fazem as coisas que sabem. Então, pegou bem na ponta dos dedos e deu três batidinhas na tabua que protegia a galeria. No primeiro o som emergiu sonoramente no ouvido de todos, o segundo subseqüente vibrou os tímpanos de todos, dando um certo desconforto, e o terceiro finalmente fez todos se calarem e olhar para cima. Victório abriu um sorriso reverberante, guardando o diapasão e arrumando os lustrosos cabelos compridos para trás das costas, todos se silenciaram.
   Em seguida, naquele sotaque declarou a todos:
- Finalmente será revelado o verdadeiro motivo de todos estarem aqui – fez uma pausa para que a suspense se tornasse curiosidade.
Nem todos eles sabiam quem era aquele homem diferente que falava estranho lá em cima. Mas todos sabiam que seu nome era Victório e que ele era amigo de Gustavo. Ele usava e abusava de magia tanto quanto um bruxo o faria, mas seus métodos eram menos ou nada negros, por assim dizer, eram brilhantes, sem a presença de um morcego, corvo ou coisa parecida – excetuando a Gárgula que possuía, que já foi-lhe apresentada de uma maneira...extravagante. Muitos, sem o conhecê-lo tal como o conheciam, o tomariam por bruxo, e o achariam tão vil como um qualquer. Mas a verdade é que a magia já está no sangue élfico, ao contrário dos druidas e bruxos, que tinham que invocar a magia, ao invés de fazê-la soar naturalmente. Para os bruxos ele não passava de uma criatura mística, que veio das fadas, gnomos ou duendes, ou dos três, mas que por algum motivo tomara a forma de um homem, cujas orelhas eram pontiagudas e maiores que o normal, ultrapassando a camada de cabelo, e o rosto fino, de queixo quadrado e olhos mais penetrantes que a flecha diante da caça, e brilhantes como o sol na hora do crepúsculo; uma elfa, como Karina, sua rainha, possuía encantos mais surpreendentes que os dele, tão encantadora como uma ninfa, que se equilibra nua numa pedra em meio ao mar.
Todos piscaram na pausa que Victório fizeram para declarar a notícia que intrigava intimamente a todos, e que agora que ele mencionara o que todos gostariam de saber, fez com que essa coisinha pegasse fogo em cada um, estavam todos curiosos, como é comumente entre os lubrinos.
Victório pigarreou:
- Estamos aqui para celebrar a escolha da mais nova princesa e herdeira do trono de Lubrín... – novamente fez com que todos ficassem ainda mais curiosos, alguns desviaram o olhar para Gustavo II sentado ao trono e Victório completou:
- A Rainha Verdadeira.
Um vozerio começou no palácio, murmúrios, e conversas baixas. Helena ficou muito satisfeita por ter sido astuta em relação a sobrinha. Mal sabia ela o que ocorreria, mas algo lhe disse que era preciso deixá-la notável.
- Por isso... – continuou Victório, dando ênfase no seu sotaque, o que fez soar como um “porr iss”. – Peço que abram alas para que todas as moças solteiras nesse recinto possam vir até o rei, apresentar-se e declarar-se da maneira como desejar – disse ele estendendo os braços e como que por mágica, todos deram passos para trás, abrindo um corredor para que a cerimônia ocorresse.

7

ERAM MUITÍSSIMAS MOÇAS para se apresentarem diante do príncipe. Atrás de Victório Gustavo e Ventura estavam ansiosos e apreensivos, moça a moça foram até diante do trono para fazer uma reverência e dizer o nome.
Eis que algumas para surpreendê-lo dançaram uma valsa abraçada a ele, somente para ter o privilégio de tocá-lo, outras recitaram poesias improvisadas outras tomaram instrumentos emprestados e fizeram uma música mais bela que a outra na opinião de Gustavo.
Ele as tratava muitíssimo bem, como verdadeiras princesas. Sabia dançar e escutar cada uma delas, sempre sorrindo, beijando a mão e tentando achar a Emily perfeita dentro de cada uma delas, pois a profecia poderia se cumprir dessa forma também. O nome de batismo nada significava nessa ocasião.
Muitas, mas muitas moças se apresentaram e fizeram graça a Gustavo, mas aparentemente nenhuma delas era a prometida da profecia. Até que...
Até que Romera, que já havia sido notada por ele antes caminho delicadamente em meio ao corredor feito pelos lubrinos, o vestido deixando um rastro de perfume e uma sombra mágica atrás dela, seu andar era delicado, suas pernas não erravam o passo, estava um pouquinho mais alta, graças ao salto. Gustavo notara a beleza dela desde a primeira vez que ela aproximou-se do trono e olhou-o. Sua maquiagem chamara atenção dele, junto com os braços delicados como os de uma bailarina, que delineavam o movimento. Parecia que tudo nela era perfeito. Todos, é claro, notaram isso. O pai de Gustavo cerrou o punho, meditando consigo mesmo para que seu filho não escolhesse uma descendente de bruxa para o trono. Bastava selar esse fato, que se tornaria irreversível. Um beijo na boca. Bastava encostar lábio com lábio que teriam a mais nova herdeira do trono. O rei imaginou os dois selando o presságio e depois viu Lubrín em chamas, e os bruxos dominando cada metro quadrado das pessoas, e o reino de seu pai, da Lubrín de sinos, indo por água abaixo. Ventura passou a mão por seu queixo fazendo-o voltar a realidade:
- Acalme-se, Gustavo. Vai dar tudo certo. Está tudo bem – disse esboçando um sorriso sem muita confiança. Dentro dela também se passava algo ruim em relação à Romera, algo inexplicável. Pensando nisso, ela sentiu um gosto de uva estragada dentro da boca, ela tentou não se fazer notar pelo marido.
Os passos de Romera ecoavam pelo pátio. Por fim, ela chegou a ele e fizera uma demorada reverência sorrindo graciosamente. Aquela moça era linda, tinha os olhos mais lindos do mundo, seria ela, pensara ele, ela é a que carrega Emily dentro de si. Seria sua rainha.
Ela ergueu-se da reverência e estendeu o braço esquerdo a ele. Gustavo aproximou-se  dela e a tomou nos seus braços, dançaram lentamente, ela fazendo o seu corpo ser sentido por ele, o perfume no pescoço, cada pequeno detalhe sendo notado, uma chama de paixão se acendendo no príncipe.
“Já tenho minha prometida”, pensou.
Depois que terminaram, Gustavo a levou para cima do palco o qual estava seu trono.
Lá de cima Gustavo teria um acesso de choro em breve. Victório tentou-lhe acalmar.
- Deixa a profecia, meu caro Rei. A pedra não mente nunca. Deixe-a cumprir-se – murmurara em seu ouvido.
- Acho que já escolhi minha Rainha Verdadeira – disse Gustavo II a todos lá embaixo – ela é a garota mais encantadora, de sorriso mais belo e toque mais delicado que já vi e encontrei.
Dentre a multidão, os bruxos soltavam um sorriso de orelha a orelha, todos eles.
- Queiram, por favor – continuou Gustavo – aplaudir Romera, minha mais nova rainha, a prometida pela Rocha dos Reis.
Houve um salvo de palmas grandioso por todos os lubrinos, exceto por seu pai, mãe, Victório, Sid, o Bobo e outros que sabiam que alguma coisa estava errada.
- Gustavo só pode estar sob encanto fajuto. Não pode ser – soltou Victório. – Nada posso fazer, embora eu seja tentado, mas interromper uma profecia pode ser mais catastrófico do que permitir que ela se cumpra, mesmo que de maneira errada –disse mais a si mesmo do que para o Rei ao seu lado. Virou-se para ele e disse: -  Temos que ser calmos, rei.
Assim que as palmas cessaram, Gustavo dera a mão para Romera, e entrelaçara seus dedos nos dela, os dois estavam lado a lado diante de todos. A ala aberta por todos já não era mais necessária, então eles foram fechando-a, se acomodando para ver o importantíssimo momento em que os dois selariam tudo com um beijo na boca.
Todos prenderam a respiração.  Gustavo pousara a mão esquerda no queixo de Romera e fora aproximando sua boca na boca dela, estava prestes a fechar os olhos, a dois centímetros, quando viu algo que parou seu coração. Romera esperando o beijo já estava de olhos fechados, concisa de que receberia o beijo... Mas Gustavo parou. Afastou-se. Romera ficara confusa com aquilo.
- Algo de errado, meu rei? – disse ela, vendo que ele observava uma linda garotinha no meio de todos os lubrinos. Ela franziu o cenho com um ar de raiva e tentou puxá-lo – Beije-me! – disse ela.
- Não... – Gustavo parecia hipnotizado. – Não posso... – tinha a voz baixa, como que se algo maior o chamasse. Mais tarde, ele podia jurar que vira um anjo no meio de todos e aquela garotinha possuía asas e uma delicadeza inigualável.
- Qual é o problema? – falara Romera constrangida, diante de todos os moradores. – O que está acontecendo?
Não dando atenção para Romera, Gustavo apontou para a mocinha:
- Você!
Os bruxos perderam o sorriso no meio da multidão.
- Faça alguma coisa! – dissera Helena para um dos bruxos ao seu lado.
Gustavo I, Ventura, Victório, o Bobo, Sid e outros comemoraram internamente que o príncipe tivesse interrompido aquilo.
- A profecia está se cumprindo! – dissera Victório.
A menininha, confusa, olhando tudo aquilo focara os olhos em Gustavo.
Ele a chamou com as mãos.
- Suba.
- Mas que coisa é essa? – Romera indagara indignada.
A menininha passou pela multidão e foi até o príncipe. Era mais baixa que Gustavo e parecia uma garotinha diante da bruxa.
- Já pode descer – dissera Gustavo secamente para ela.
Emily fez menção em sair, mas Gustavo pegou em seu ombro.
- Não você, minha linda. Ela – e apontou para Romera.
- Não acredito! Não pode ser. Você está me trocando por ELA! Essa pirralha ignorante? Essa, essa, UVA PODRE!
Todos reagiram com essas duas palavras, era o pior palavrão que se poderia referir a alguém.
- Afinal – Romera virou-se para a garotinha num tom alto e brusco. – Quem você pensa que é?
- Basta! – ordenou Gustavo alto, num tom de Rei que impressionou a todos, inclusive seu próprio pai na galeria. – Guardas! Tirem-na daqui!
Dois guardas subiram o palco e a tomaram pelos braços.
Os bruxos vaiavam do fundo do palácio.
- Isso é uma afronta! – um deles soltou.
- Garota! – dissera Romera presa nos braços dos guardas. – Guarde minhas palavras: vai se arrepender por roubar meu rei de mim! – e virou-se para Gustavo. – Você será meu amor! E sentar-me-ei no trono ao seu lado – disse num tom profético. Aparentemente seus olhos tornaram-se mais escuros.
- Tirem-na daqui – falou Gustavo.
O alarde era total pelo palácio, mas todos estavam em silêncio, menos os bruxos que consideraram aquilo uma verdadeira falta de respeito.
Depois de tudo isso, Gustavo sorriu para a garota. Garota essa que nunca vira mais linda ou mais branca, não portava adorno algum, ou qualquer maquiagem, apenas um vestidinho de algodão cor-de-rosa e exalava um cheiro magnífico. Ele pegou em sua mão.
Prontamente ela fizera-lhe uma reverencia.
Ele a trouxe para seus braços e dera-lhe direto um beijo em sua boca. A menina esbugalhara os olhos, mas depois acalmou-se retribuindo o beijo.
Nisso, todos estavam confusos com tudo que estava acontecendo, durante o beijo ninguém soltou barulho algum, um silêncio mortal tomou conta de cada coração, as luzes aparentemente ficaram mais brancas, demonstrando o brilho da pele da mocinha, que era mais branca que porcelana. De repente todos se deram conta do fato e uma saraivada de palmas soou do palácio, os sinos tocaram do lado de fora. Depois do beijo, Gustavo virou-se para todos com um sorriso.
- Acredito que ela não precisa nem proferir o nome dela, pois a profecia já nos deu-o. E não ficaria surpreso, lubrinos, meus queridos, que esta moça, que agora está selada ao meu lado, seja a Rainha Verdadeira, a proferida pela Rocha dos Reis e seu nome ser...
            - Emily – dissera ela num tom confuso.

Parte II PROFECIA


Parte II



o~~~~~~o~~~~~~~o~~~~~~~o~~~~~~o


PROFECIA

╡CAPÍTULO TRÊS╞ SURPRESINHA


CAPÍTULO TRÊS

SURPRESINHA


PARTE DE NÓS sabe como é uma loucura esse tempo e como ele passa rápido. Outra parte não quer nem saber disso, quer as coisas como estão, exceto quando estamos com dor de barriga, aí as duas partes querem que o tempo passe bem rápido. Mas quem que já não desejou que o tempo passasse num piscar de olhos para que tudo aquilo acabasse e finalmente as coisas voltassem no eixo? Quem nunca quis dormir pelo menos três horas antes na véspera do aniversário para chegar logo o dia? Quem, eu pergunto quem, já não tentou flagrar o papai Noel no dia de natal? Creio que o tempo seja um verdadeiro mistério para o mundo, nós nunca o sabemos e nunca temos a noção exata dele. Por exemplo... tente adivinhar que horas são agora, mas sem trapacear. Se acertar ganha um doce, mas você tem que admitir que foi pura sorte. Os lubrinos, por exemplo, tem uma cantiga muito corriqueira para essa coisa que é um mistério a eles:

Tempo é hoje
Pelo ontem vejo
Ontem não é hoje
Mas também é tempo

Tempo de espera
Ele se acresce
Gira aquela esfera
E tudo desaparece

A noite cai
Me sobe o pensamento
Tempo vem e vai
Encontro-me por dentro
Para tudo há tempo

Ah, exatamente o tempo. Lembra-se de sua infância com os amigos? Os pés sujos, não podendo entrar em casa, os bonecos todos para arrumar depois de uma tarde inteira ou as bonecas, sem braço, mas que eram cuidadas com muito carinho e depois despejadas numa caixa de papelão? Outras não, eu sei, outras tinham um carrinho próprio; mas bonecos... Bonecos não envelhecem. Logo, a boneca torna-se borracha ou pano e fica negligenciada. Arrumam-se namorados ou namoradas, e quando se vê, a adolescência já é passada, o mundo já é visto com olhos mais preocupados e tudo torna-se tão ainda mais curioso... Tudo, na medida em que envelhecemos, vamos percebendo a capacidade do mundo que nos rodeia e tudo torna-se mais belo, e no entanto mais triste. Porém, o tempo é o único indestrutível ser. Não se mata à espada, não se joga uma flecha nem nada. O tempo é um mistério.
E enquanto ele passa com uma rapidez incessante, as coisas em Lubrín vêm-se mudando aos poucos. Os lustres todos trocados, de sinos para cachos de uva cintilantes, com um brilho pálido capaz de iluminar como se fossem dezoito velas. As aldravas do castelo inteiro foram trocadas, exceto a do salão real, que por escolha de Gustavo, uma era sino, outra uma vinha. A escultura da fonte, a qual Ventura havia escolhido do exato momento do casamento estava quase em seu fim.
Alguns quadros no interior também foram trocados, a maioria deles guardados junto às antiguidades, as cortinas todas foram trocadas, perdendo o bordado de sino e apenas adquirindo uvas desenhadas com linhas de ouro, exceto, mais uma vez, no salão real, que ainda conservava em honra, outras coisas do passado.
Sid, embora o tempo passasse apenas sua barba crescia verdadeiramente negra, o resto mantinha-se intacto, coisa que intrigava de certo modo a Gustavo, que certa noite pegou-se pensando: “Só pode ser aquela touca que ele mal tira, só pode!”, mas nunca foi mais que uma curiosidade tola, pois amava Sid como se fosse seu pai, na verdade, era o que tinha de mais próximo de seu pai, seu Herói, O Rei da antiga Lubrín de Sinos. Agora, ele tinha sua própria Lubrín do Castelo de Vinho.
E por falar nisso, tudo dera certo depois do ritual feito há um bom tempo atrás – embora você provavelmente tenha acabado de ler sobre ele. O odor magnífico do vinho exalava-se das entranhas do castelo, levando sabor à água, e levando felicidade aos habitantes constantemente. As nuvens agourentas dissiparam-se depressa, os acidentes com faca e carroça diminuíram, e até a cobrança de impostos diminuiu. Todavia, as ruas de Lubrín perderam toda a uva que seria possível existir e ninguém fabricava seu vinho ou fazia seu suco de uva. Tudo aquilo agora existia dentro dos muros de Lubrín e só poderia ser bebido lá dentro, pois tornara-se uma espécie de segredo, o segredo da felicidade e devia ser o máximo protegido.
Enquanto – mais uma vez – esperamos o tempo passar, deixa-me dar notícias da família Daco. Eles receberam uma mansão na segunda Sul como era de costume as pessoas ricas morarem. E o Pai Daco, no entanto, com o dinheiro, fizera uma biblioteca e esta se localizava num condado ao sudeste de Lubrín, fora dos limites, mas que sobre a torre da Catedral do Sino era possível enxergá-la. A fez lá, pois começou andar de cavalo e adorava viajar, e olha que era bem longe. Para ficar cuidando, pediram para a dona da casa, que na verdade era herdeira, Margareth, a qual falarei muito mais adiante, pois ela tem participação eu diria vital nessa história como vocês saberão a hora de chegar – essas histórias tem um monte de coisa a se dizer, mas que só o tempo pode responder, olhe só, o tempo. Enfim, ela veio cuidando de tudo desde então. Era uma moça nova, por volta dos seus dezenove anos de idade, fascinada por leitura. Por isso, a biblioteca.
Por fim, acho que já é hora de pararmos de esperar, pois aqui vem uma coisa extremamente estranha, que, porém fizera todos gargalharem no momento, com um pouco de estranheza, é claro.
Nove meses se passaram enquanto essas frases foram escritas. Com esse tempo, Ventura veio gerando seu filho. Estava linda gestante, a barriga enorme e como as camareiras cochichavam às vezes, parecia que ia ter gêmeos, porém é claro que não, sua filha, Emily a qual nasceria era de fato grande. Havia um quarto só para ela, com bonecas, e roupas femininas, com laços coloridos, borboletas na parede, estrelas cintilantes no céu do quarto. Emily estava sendo esperada com grande ansiedade e no dia de seu nascimento, como creio ter falado, a notícia seria espalhada sem boatos, pois é claro que havia boatos. As histórias não escapavam, porém haviam pessoas que mal sabiam que o reino estava para ter uma princesa. E se muito te conheço, meu caro, você já sabe o que vem adiante, pois certamente você tem os seus próprios boatos. É estranho como a mente trabalha. Por enquanto, por aqui, então, não falarei mais nada, deixarei que esse maravilhoso mistério que é o tempo lhe responder.

13

VENTURA MANTEVE-SE DE repouso na ala hospitalar do castelo. Ela dormia. Havia um livro em seu colo e a tarde corria pelo lado de fora com raios fracos de sol, trespassando a cortina entreaberta da ala. Dentro da ala, noutros quartos, havia outras pessoas, é claro. Soldados machucados, pessoas doentes, mas ninguém prestes a morrer. Quando o hospital de Lubrín não funcionasse, os plebeus utilizavam o castelo, mas bem raramente era preciso, geralmente em períodos de férias dos médicos, ou quando alguns deles não conseguiam chegar, por serem de outras bandas além dos limites de Lubrín.
Como você mesmo pode imaginar, Gustavo não saíra da ala, andava de lado a lado, o coração palpitando em seu peito como engrenagens de um relógio para rolar os segundos. Fora no banheiro cerca de quatro vezes num intervalo de quinze minutos e se não fosse Sid levar-lhe os sapatos, estaria só de meias zanzando na sala de espera.
Na noite anterior – por que essas coisas só acontecem no meio da noite, eu não sei -, Ventura sentiu fortes contrações em seu ventre, acordando Gustavo com puxões bruscos no pijama e Gustavo ergueu-se mais ligeiro que pôde para levá-la. Chamou consigo seus guardas reais e levaram-na para ala. Gustavo, no entanto, passou a noite em claro, achando que Emily viria à luz (da lua) num instante, mas tudo não passara de um susto. O Doutor Pietro, um velho com a cabeça careca, com o cocuruto polido, porém com cabelos acima das orelhas de abano, disse que estava tudo bem, mas que em breve a princesa nasceria.
- Vou deixá-la sob cuidado das parteiras, deixei três com ela.
- Obrigado, Pietro – dissera Gustavo acenando com a cabeça.
A expectativa alcançava a quase todos que estavam acordados no caminho do quarto ao hospital, pois em Lubrín, principalmente o nascimento de uma princesa, era algo grandioso, como você pode imaginar, então as notícias, ao contrário do previsto já estavam circulando. Lentamente, sim, mas circulando. No final do dia, todos já saberiam que havia uma princesa prestes a nascer.
Desde as três da madrugada, a hora que Gustavo fora acordado de maneira muito delicada, até o instante em que Ventura adormecera com o livro sobre o peito, nada da princesa dar as caras, mas nem mesmo isso fizera com que Gustavo relaxasse. O que fez foi parar de andar e sentar um pouco, pois se imagine no lugar dele. Novo, rei e pai obviamente de uma princesa! Não, não, ele teria que ficar acordado, botara isso na cabeça.
Dentro de uma taverna na cidade, por ser uma quinta-feira, não havia muitas pessoas, principalmente no período da manhã, mas um beberrão que todos conheciam por Tibúm, chegara com sua barrigona imensa no balcão e soltara a nova.
- A princesa vai nascer e me dê um copo!
Todos os presentes franziram o cenho ao mesmo tempo, o taverneiro se aproximou mais dele, e os demais foram chegando mais perto do balcão reforçando a audição.
- O que disse?
- O rei vai ter uma filha! Não seja idiota, ta todo mundo sabendo! Lubrín vai ter uma princesa!
Todos primeiro ficaram chocados, depois riram.
- E como você sabe? – perguntou um dos curiosos, de bigodão ruivo que ia até depois do queixo.
- A filha da nora do tio da prima da irmã Linda do convento da catedral de sinos de Lubrín, disse para sua vizinha que é prima de segundo grau da minha concunhada, disse para minha concunhada, que disse para minha cunhada que falou para o pai dela e o pai dela, disse para a mãe dele, que disse para minha esposa que disse para mim. Foi assim que eu fiquei sabendo. Agora eu estou contando para vocês.
- Tibúm... isso não é nenhum truque para receber bebida de graça, é?
- Olhe para minha cara, Orlando! Sou um homem honesto – falou ele batendo com o punho no balcão, dando ênfase a ultima palavra. - Agora se não quiser acreditar, tudo bem, deixe com está e pegue logo meu copo.
Ao que o taverneiro virou as costas, os rapazes já haviam saído todos. Cada um contou para seu avô, ou tio, empregado, cozinheiro, cachorro, mulher, amante, padre. E estes contaram para seus filhos, primos, sogros, mães e pais. E estes contaram para a família toda no almoço, que contaram para o moço do correio e o moço do correio correu contar para seu primo que já sabia da notícia.
Com isso, a expectativa alcançou todo mundo de Lubrín antes mesmo de Emily nascer, como era o previsto.
Ventura acordara sem reações graves por volta de quatro horas da tarde, Gustavo dormia no corredor de espera. A rainha sentia chutes em sua barriga e chamara as parteiras. Depois de duas horas mais ou menos, as contrações voltaram, Ventura ia começar o trabalho de parto, já seria hora, e tudo passou a ocorrer ao mesmo tempo, mas sem desespero e depois de tudo isso ocorreu uma surpresa, deixe-me explicar essa história.
Parecia tudo uma revolta, os fazendeiros deixaram suas plantações, as babás levaram as crianças e as escolas pararam de funcionar. Tavernas fecharam, o açougue parou, os cocheiros levavam comitivas aos montes. Um vozerio alcançou a ala hospitalar. Quando a parteira abriu a janela para ver do lado de fora, notou uma multidão: Lubrín inteira estava esperando o nascimento de Emily!
Todos do lado de fora esperando o grande momento, parecia uma revolta, mas não. Estavam todos lá. Alguns seguravam as mãos um dos outros, para dar forças, a ansiedade de ter uma princesa era enorme.
- Meu pai! – falou a parteira e fechou rapidamente a janela com nervosismo.
Ventura começara o trabalho de parto. Seus gritos num instante seguinte acordaram Gustavo no corredor de espera. Agora a pulsação do coração era o dobro, ia enfartar. Ia e vinha do banheiro.
Ventura gritava demais, do lado de fora todos se olhavam esperançosos.
- Está nascendo, rainha, continue fazendo força! Peguei sua cabeça! Continue! – A parteira olhou para a outra sorrindo. – Vai nascer!
O bebê veio à luz, cortaram seu cordãozinho umbilical e deram-lhe um tapa para fazê-lo chorar.
- Olhe só, olhe só... Parece que Emily tem uma surpresinha para nós.
No que todas do quarto olharam, para a grande surpresa, Emily entre as pernas sabe-se lá como, tinha uma surpresinha... um pipi. Na verdade, Emily era príncipe e as parteiras riram. Mas elas mantiveram isso em segredo até rainha poder vê-lo. Você não sabe como essa notícia causaria um reboliço total no castelo mais para frente.
- Veja só... Um pipi! – falara a parteira entre risos enquanto limpara Emily, isto é... O príncipe não podia ficar com esse nome, mas continue aí para saber como tudo se sucedeu.
            Foi mais ou menos assim pelo que eu me lembre...

╡CAPÍTULO DOIS╞ A UVA ESPERTA


CAPÍTULO DOIS

A UVA ESPERTA

6

- QUEM É ELA, Victório?  - perguntou Álvaro contemplando no reflexo liso de uma rocha muito polida, a mulher mais bela e branca que já vira e nunca houvera pintado.
- Esta, Álvaro Baixo, é Emily do castelo de Vinho, Rainha de Lubrín – respondeu Victorio, e sua voz ecoou pela penumbra. – Há anos que a rocha dos reis não revela uma rainha verdadeira.
- Quero... Tenho que pintá-la no maior quadro. Será minha melhor obra.
E realmente foi. Suas tintas jazidas na tela branca foram vitais para Emily e para as próximas gerações do Castelo de Vinho. Aquela pessoa... Ele sabia o tempo todo quem era.

7

PROVAVELMENTE O QUE acontece aqui é uma das piores coisas que eu vou contar-lhe, pois é bem nesse momento em que as coisas delinearam um futuro para toda essa história, um futuro realmente triste, mas que no fundo devia ser feliz e havia tudo para ser feliz.
Depois de um ano que se casaram Gustavo via que nada havia mudado em Lubrín, a não ser, aliás, que o castelo agora tinha uma rainha, mas mesmo assim, as coisas não mudaram como deveriam. Então o rei caminhando pelo castelo indo em direção à sala do trono tivera uma idéia que julgou ser muito boa. Então parou no meio do corredor e ficou olhando para frente, estático como uma escultura por alguns segundos sorrindo, depois deu meia volta e fora falar com Sid, o conselheiro-mor, pois o reino passaria por um processo de mudança.
Sid estava na sétima torre, a qual fora projetada por ele mesmo e logo construída para seus estudos e leituras. As escadas que davam acesso ao último andar, tinham livros fazendo suporte para os degraus e havia livros jogados por cima deles também. Alguns empoeirados e esquecidos, a iluminação era por pedras de luz própria ao que se subia. Nem mesmo Gustavo reconhecia qual dos livros se, se puxado, abriria uma porta secreta, Sid era cheio delas, era sua maneira de aparecer ou desaparecer rapidamente.
Neste instante ele visualizava o clima futuro para fazer um relatório para os coletores das fazendas de Lubrín. Olhando de novo em suas lentes que davam para o norte, notou uma espécie de neblina um tanto estranha e anotou em seu caderno. Logo mais investigaria a origem da neblina. Lá embaixo passos ecoavam correndo, subindo as escadas.
Gustavo chegara abrindo a porta, Sid virou-se de sua mesa e contemplava aquele sorriso estranho estampado no rosto do rei.
- Majestade... – cumprimentara Sid levantando-se e ajeitando o capuz açoitando-o para frente, depois fazendo uma breve reverência com as mãos.
- Meu conselheiro... – disse Gustavo abaixando a cabeça, respondendo à reverência. – Tenho algo que precisamos discutir e acho que será uma solução para todo o reinado.
Sid inclinou a cabeça para frente franzindo as sobrancelhas semi-cerrando os olhos infantis.
- Queira sentar-se, meu rei – falou Sid puxando-lhe uma cadeira e indo em direção a um armarinho, buscando um bule de chá, pois notara que a conversa seria demasiadamente longa.
- Bolo de laranja, Sid. Se não estiver em falta.
- Como quiser, Majestade.
 Os dois sentaram-se na mesa de estudos do conselheiro e trocaram uma conversa longa. Do lado de fora o sol fulgurava por toda a Lubrín e os sinos da catedral badalavam duas da tarde.
- Tenho certeza que pode dar certo! – disse Gustavo com veemência.
- Acredito que seja um processo mágico cauteloso. Mas está fora de meus conhecimentos, meu rei, não sou nenhum mago ou druida para ter certeza. Se realmente quiser isso, vai ter que mandar mensageiros para o Baronato atrás da colina noroeste, que não pertence à Lubrín, pois fora construída atrás da visão da torre da catedral.
- Eu sei. Mas se der certo, imagine a harmonia que não se propagará por toda a cidade! – falara apontando janela afora. – Eu gostaria que minha mãe ainda estivesse viva – falou com pesar.
-Ela era uma feiticeira e tanto, Gustavo. – dissera Sid colocando sua mão no ombro do rei. - Com certeza suas aptidões mágicas fariam tudo dar certo. Mas ainda desconfio que depois de sua morte no parto, ela te dera algum dom mágico, eu não sei.
Gustavo dera outra mordida no bolo.
- Mas o reino precisa passar por mudanças. A magia dos sinos está minguando, eu sinto isso.
- Você também? Acho que O Rei, seu pai, a colocou para até quando você crescesse e o reino caísse inteiramente em suas mãos. Agora Ventura é sua rainha, cabe vocês dois a governar, não obstante, pode contar comigo para os conselhos. E sei que a harmonia voltará inteira sobre Lubrín, pois eu também sinto que haja essa fraqueza durante o badalar do sino.
- Certo – falou o rei olhando para baixo. – Vou enviar um mensageiro ao baronato, na casa das bruxas. Há alguns druidas por lá, pelo que sei.
- Sim, há, Majestade. Mas deve ser cauteloso com essa gente mágica, eles são muito astutos e podem fazer qualquer coisa para tomar o reino ou toda a sala do tesouro. Você quer realmente fazer isso?
- É para o bem de todos. O sorriso do meio-dia anda enfraquecendo, a próxima fonte de felicidade será o Castelo, o Castelo de Vinho, como ele será conhecido – nesse momento seus olhos brilharam e aquele sorriso mais uma vez perpassou por seu rosto.
- Pois bem, meu rei. Seu desejo é uma ordem. E assim será. Lubrín voltará a sorrir em todas as horas do dia, sob um odor delicado de uva. Quer que eu mande imediatamente as cartas?
- Por favor, meu conselheiro-mor.
- Vou mandar uma escolta de oito homens junto ao mensageiro, ainda não confio no pessoal do baronato, eles são... gananciosos demais.
- Tenho certeza de que tudo dará certo. Esse momento será memorável por muitos anos de meu reino, finalmente o meu reino.
Gustavo, rei do Castelo de vinho do feudo de Lubrín. Esse fora o nome que então passou por sua mente. E não duvido que você como rei de Lubrín não fizesse o mesmo. Principalmente tendo Ventura como rainha ao seu lado.
Quando ela recebeu a notícia ficara realmente feliz, pois tudo que iria mudar era por causa dela, o reinado inteiro se tornaria um traço de Ventura.
- E quando tudo estiver acabado, Gustavo, quero uma estátua minha e sua na fonte em que haverá a queda do vinho. Como na hora de nosso casamento, lembra? Você me segurando e as coroas em nossas cabeças, um momento antes do beijo. Quero que seja uma estátua gigante e perfeita, vai ficar lindo e o perfume vai ser o mesmo que na hora de nosso casamento.
- Assim será, Ventura – e deu-lhe um beijo na testa, ela fechando os olhos. 

8

NÓS DOIS SABEMOS que bruxas e bruxos não são muito confiáveis, são capazes de tudo, desde a maçã envenenada até a prisão da donzela nas ruínas de um castelo protegido por um dragão jovem que cospe fogo. Eles têm o rosto amargo e sempre que sorriem se não de triunfo, falsamente. E raramente te olham nos olhos, a não ser quando querem te fazer algum feitiço hipnótico ou coisas que nem mesmo eu imagino, dá calafrios de pensar.
No entanto, no dia seguinte ao que Sid enviara o mensageiro, dois druidas a cavalo apareceram trajados rusticamente, com chapéus pretos de grande aba e pontudos. Trajavam sobretudos também pretos ornamentados com correntes grandes que tilintavam ao que se mexiam, e suas mãos eram cheias de anéis com gemas.
Eles chegaram à uma rápida velocidade aos portões de Lubrín.
- Abram os portões, abram os portões – gritava o mensageiro acompanhado dos bruxos vindo à tona, ao longe, sua escolta de arqueiros modificava o rumo.
O porteiro abrira o grande portão, rangendo sua madeira pesada, os três entraram sem reduzir a velocidade passando pelas ruas de Lubrín pelo lado oeste cortando o centro e depois virando para o sul, onde as ruas levavam ao castelo.
Os moradores de Lubrín que viram os dois bruxos seguindo o mensageiro, logo escondiam seu rosto ou passavam depressa para não haver um contato, essa gente mágica não era bem vista pelos lubrinos, você pode perceber o motivo.
Atentos, os arqueiros das torres que protegiam os portões metálicos do castelo se prostraram retesando seus arcos mirando nos arcanos, porém não foi necessário o disparo, os portões se abriram e eles foram guiados até a sala do reino. Conforme passavam pelas escadas, soldados que seriam tomados como estátuas de armaduras de placa completa, seguiam os três, mais ou menos dez deles. Caminhando pelo corredor de madeira, passando pelos quadros e esculturas, o mensageiro chegou à sala do trono abrindo as duas portas de entrada, Sid e Gustavo, que os esperavam sentados um em cada trono, olharam-nos rapidamente, no canto um pianista tocava algo calmo, este não parou quando toda a comitiva entrara. Ventura não estava no salão. Os soldados se alinhavam nas margens do salão voltando a parecer estátuas.
Sid trajava-se diferentemente para a ocasião, seu capuz era um negro como o breu, que aparentemente soltava uma aura esfumaçada cinzenta, como se houvesse uma tempestade à caminho nos céus. Vestia dois colares de proteção contra magias, um deles era rosa, pontiagudo, o outro era branco e gélido, porém estavam por dentro de sua roupa. Em suas mãos e nas de Gustavo também, havia anéis de gema mágica.
- Saudações, meu rei... – dissera o mensageiro fazendo uma reverência se ajoelhando no chão. Os bruxos observavam ao redor.
Gustavo pediu para o mensageiro se levantar e com um gesto pediu para que os bruxos se aproximassem. Ambos estavam com rostos austeros, mas sem malícia. Sid os observava atentamente.
- Saudações, feiticeiros de Erlan, o Baronato atrás da colina – dissera Gustavo.
Eles retiraram os chapéus e fizeram uma reverência, a moça ergueu a aba da saia, tilintando as correntes fazendo o pianista atrás deles errar o acorde.
 - Permita-me me apresentar – a moça dera um passo a frente. – Helena da sétima casa, druida de Erlan, filha de Aline, falecida maga. Espero que o assunto seja importante – falou olhando para o bruxo ao lado – estou perdendo o chá de bebê de minha irmã, logo nascerá minha sobrinha, Romera – depois voltou-se para os olhos de Gustavo. Helena era linda, sua pele branca se destacava nas vestes pretas, tinha cílios grandes e usava uma maquiagem leve nos olhos, ao que Gustavo notara. Sid estava quieto observando a cordialidade. Ela soltara uma risada com uma voz forte, mas breve, voltando ao seu rosto austero. O druida ao seu lado também rira. Sid e Gustavo trocaram um olhar.
- Sou Demétrio, druida especialista na natureza – disse o outro druida com uma voz serena. Demétrio tinha o tom de pele escuro, seus cabelos longos e crespos sobravam  pela borda do chapéu, algumas mechas da franja caiam em seu rosto, ele fez uma reverência.
- Bem-vindos, bem-vindos, druidas. Creio que meu mensageiro já tenha adiantado algo sobre o pedido que tenho a vocês, não? – os druidas acenaram positivamente. – Pois bem, o pedido é o seguinte, queiram se sentar.
Os quatro sentaram-se e conversaram sob a música do piano que preenchia o espaço, Sid assumia um ar sério, mas era bastante diplomático, na maioria das vezes ele se propunha a uma explicação mais razoável, era muito sábio como creio já ter dito anteriormente. Seus olhos que nunca envelheciam, perfurava os olhos dos druidas. Não havia nada de mal neles na verdade, acontece, como eu disse antes, que não são pessoas confiáveis esses mágicos.
- Ora, ora – disse Helena. – Isso vai custar um preço e tanto! – falou olhando para Demétrio com meio sorriso. – O que acham de dezenove mil peças de ouro?
Sid desviara o olhar para Gustavo, este pensava por um segundo.
- Dezenove mil? E o que acha que vai fazer? Montar um castelo?
- Ora – disse o druida. - É a felicidade de seu reino, se não me engano, que está em jogo. E dezenove mil é o que garante a felicidade minha dela, me parece um preço justo. – falou cruzando as pernas.
- Quatorze mil. Sete para cada. Daria um fortuna para pelo menos duas gerações de vocês, se quiserem.
- Quatorze...? – falou ela pensando. – É um processo bastante delicado para tão pouco. Mas hoje estou generosa e não quero perder mais tempo aqui, ainda há tempo para o chá de bebê, Demétrio?
- Quatorze, Helena? Tem certeza?
Gustavo olhara para Sid. A música no ambiente tinha um ritmo acelerado.
- Sim. Acho que dezenove é muito para eles – falou ela numa voz fina.
- Que assim seja? – disse Sid antes que os dois mudassem de idéia.
- Quatorze mil está ótimo – falou fechando os olhos. – Vamos então, Demétrio. Nos dêem um mês para estudo, fazer o que vocês querem é um tanto complicado.
Os quatro levantaram-se. Helena, ao despedir-se dera a sua mão direita coberta por uma luva de renda para Gustavo beijar. Ele se inclinou e a beijou.
- Vamos, Helena – disse o druida.
- Meus cavaleiros os acompanham do lado de fora até os limites de Lubrín.
Assim, os dois saíram. A música parou no salão.
- Ainda tem certeza de tudo isso, majestade? Tenho um mal pressentimento – falou o conselheiro de frente a Gustavo.
- É para o bem do reino, Sid. Fique calmo – o rei esboçou um sorriso.
- Ao seu dispor – disse e fez uma reverência saindo em seguida pelas portas do salão indo até sua torre.

9

UM MÊS. UM mês é o bastante para muita coisa. O que você e eu não fazemos em um mês? É possível pintar um quadro simples, emagrecer, aprender um idioma de uma terra distante, explorar cavernas, engordar, aprender um instrumento, engordar, fazer uma casinha, céus... muitas coisas podem acontecer num único mês sem que tenhamos a noção de que o tempo passou de maneira tão rápida, que mal vimos que engordamos tanto, não é mesmo? Eu sei, eu sei.
Durante quase esse mês inteiro, os druidas não deram uma notícia sequer sobre como estava indo o processo de mágica. Gustavo, Sid e Ventura precisavam de notícias. Mas lá pela segunda semana desde que os bruxos saíram portões à fora, enquanto Rolando o Bobo, bobo da corte fazia malabarismos aos reis com vinte e três limões e arremessara todos para o alto no intuito de caírem alinhadas e finalizar o número, houve um baque forte na janela, quebrando o vidro em estilhaços, fazendo os limões caírem na cabeça de Rolando. Uma criatura cinzenta com o rosto terrivelmente feio e mal humorado, os olhos amarelos cintilantes, um sujeitinho pequeno, com asas e feito de material rochoso chegara girando no ar com uma mensagem nos pés. Ele passou rasante até o chão no degrau dos tronos gritando com uma voz engasgada.
- Peeeeemita-me apresentaaaar-meee! – gritara ele com sua voz histérica e aguda.
O rei estava aturdido, espantado.
- Quem é você?
- Aaaaaaaaaaaaaah! – gritara ele estridente como uma sirene nos dias de hoje causando uma careta de estranheza em todo mundo. - Exatamente, exatamente. Quem sou eu e o que faço aqui, você me pergunta, embora não diga, ou não importa se diga ou não, é o que quer que eu fale! Muuuuuuuito esperto, meu rei! – e desatara a rir mexendo os braços se contorcendo todo.
Gustavo olhara para Ventura e depois para Rolando que também ria. Fechou os olhos recompondo-se da situação e voltara a atenção a gárgula à sua frente. É claro que era uma gárgula, voador, rosto mal-humorado, de pedra, com asas.
- Então...? Veio nos trazer alguma mensagem dos bruxos?
- Bruxos? No-no-no-no-no-no – falava ele chacoalhando o indicador. Ele pigarreou. - Sou Vagabundo o mensageiro-gárgula de Victório o Elfo do norte, da floresta além dos limites de Lubrín e mais uma vez mesmo que não pergunte eu tenho uma mensagem, é claro, porque eu não ia vir aqui a passeio, não iria voar e voar, se mexer é chato demais. Sabe uma vez um tio meu se mexeu tanto e tanto que virou uma coruja e morreu de fome! – fez uma pausa ficando paralisado. Os demais ficaram olhando-o, mas ele voltara a falar: - E alguma parte de tudo isso que eu falei pode não ser verdade! Mas cá estou eu! Vamos ao que interessa: Vocês têm alguma gárgula fêmea? Mentira, mentira – disse dando uma risadinha gorgolejante meio raspada, pedregosa.
- Diga logo o que tem a dizer! Vamos! – disse Gustavo com impaciência.
- Hei! Calma, tá bom? Calma – ele retirou um pergaminho todo amassado de seu pé e o esticara depois leu em voz alta:
Meu caro, jovem Rei de Lubrín dos tempos atuais e futuros, dos muitos reinados de Lubrín que ainda hão de vir, meus cumprimentos, saudações e parabéns, eu posso dizer. Antes que continue a ler, tire Rolando da sala...” – nisso a gárgula olhou para o Bobo e apontou para aporta: - chispa!
Ele saiu com os limões na mão, assim que a porta se fechou, Vagabundo continuou:
... Melhor assim, obrigado. Como eu ia dizendo, meus parabéns, é muito agradável saber que você ama Ventura do fundo de seu coração e eu tenho ótimas notícias para vocês...
Ventura olhou para Gustavo, este sentara-se ao seu lado e pegara em sua mão.
... e não vou me demorar a dizer, porque é uma informação importante. No entanto, desculpem-me pelos atos de Vagabundo, e vocês podem me mandar o custo da janela de vidro que ele quebrou. Contudo, como eu disse é uma informação importante. Eu estava mexendo em minhas coisas no alto de meu palácio quando a rocha dos reis cintilou e vibrou e foi então que eu soube: Vocês terão uma menina!
Ao que a gárgula lera isso, Ventura virou-se e deu um beijo na boca de Gustavo, ambos sorriam muito.
“Ela apareceu na rocha, será a rainha das rainhas, a verdadeira!, com todo o respeito, é claro, Ventura Daco. E seu nome me fora revelado: Devem chamá-la de Emily. Ela será a mulher mais linda e mais inteligente que só houve nos tempos remotos de Lubrín quando eu ainda era moço, mas algo que não sei ao certo vai acontecer, quando perguntei a rocha o que era, ela simplesmente emanou um cheiro de vinho e não revelou mais nada... perdão.
Mais uma vez meus cumprimentos, saudações, parabéns e agradecimentos. Que os ventos lhes entreguem uma boa Era.
“Victório Ghirash, aos seus dispores e ordens.”
- Bem, é isso! – disse Vagabundo. - Trabalho feito. Agora... onde eu posso me empoleirar e ficar quietinho até partir? Estou com preguiça de ir-me agora.
- Muito grato, Vagabundo, mensageiro-gárgula. Seus serviços foram importantes. Pode ficar no topo de meu trono se quiser, mas sem dizer uma palavra.
- Estáááá certo! – Ele deu um salto e voou até o topo do espaldar do trono esquerdo, de Gustavo e ficara lá como se fosse parte da decoração, os olhos que antes brilhavam, agora eram opacos e ele parecia que nunca mais iria se mexer. E se pudesse nunca mais o faria, também.
O reino de Lubrín já teria uma princesa e não uma princesa qualquer, ela seria a Rainha das Rainhas como prometido pela rocha. Agora só seria o momento de esperá-la nascer e revelar a todos a grande notícia se no terceiro ou quarto mês de gestação ela já não fosse evidente por si própria, é claro. Naquela noite dentro do castelo, fora servido um banquete para todos comemorarem. Um banquete mesmo: com porcos assados, perús, saladas de tomate seco, alface, rúcula, cenoura, pepino, e para beber suco de uva, laranja, pêssego. Não faltou o vinho e sidra. Sid bebia hidromel com os beberrões da corte. Pelo salão todos riam e fumavam cachimbos e como se não bastasse, a janta durou até o anoitecer, e o sino badalou pontualmente no silêncio repentino e todos voltaram a rir. Todos comeram e ficaram fartos, mas é claro que reservaram espaço para sobremesa que era de chocolate, também havia saladas de fruta e bolachas com mel e limão. Houve cantoria e todos brindaram a notícia da princesa que nasceria.
-Viva! – disseram eles terminando a noite.

10

COMO VENHO DIZENDO desde provavelmente o início, há histórias que eu só posso contar mais adiante como o caso da taverna e há coisas que não são contadas aqui, pois eu ficaria anos escrevendo. Mas também tem aquelas coisas como o momento do sino que são mágicas que devem ser descritas e que devem perpetuar em seu coração como está no meu.
As histórias têm coisas significativas que nos fazem vivenciar momentos que embora nunca tivéssemos a chance de participar se tornarem reais diante da perspectiva da imaginação. É justamente por isso que estou narrando essa história. Pelo fato de ter amado Lubrín como nunca em todo esse trajeto que escrevo para você. Perdoe-me se quiser saber o que acontece com todos os Lubrinos depois da idéia de Gustavo, muito embora tenha certeza de que você já tem conjecturas próprias e inclusive está dando os papéis de mocinhos e vilões àqueles que apresentei aqui. E inclusive não me espantaria caso você tivesse certo, meu caro.
Neste instante, se eu soubesse o que ocorreu por lá, eu lhe levaria a um passeio a cavalo até o Baronato de Erlan ao noroeste de Lubrín, no entanto não posso, justamente porque tenho medo de ir para lá. É algo de infância, me desculpe. Foi algo que adquiri crescendo dentre o povo de Lubrín. Mas já que não podemos ir para lá, gostaria de brincar um pouco com a imaginação na qual demonstraria de maneira muito errada – ou talvez muito certa – de como é o conselho dos bruxos.
Você pode imaginar a madeira do assoalho rangendo na casa a cada passo que se dá e portas as quais há muito fechadas, ainda abrem sozinhas e se fecham com um baque seco levantando poeira e fuligem. No mais, os cantos são repletos de calangos verde-musgo de tamanhos inimagináveis. Ao anoitecer dezenas de morcegos ficam dependurados na armação do teto tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Ou pior ainda, eles podem estar voando.
E muito provavelmente durante esse mês todo que Gustavo viera aguardando, havia uma luz de uma vela oscilando nas madrugadas causando um clima tenso naquelas redondezas. E também muito provavelmente vociferações e tentativas de feitiços em conjurações hediondas e malignas em voz alta, que acordavam os ratos dentro de suas tocas dentro da casa. Imagine você acordando com gritos numa língua desconhecida! É melhor eu parar de falar disso por aqui, já está me dando calafrios.
Mas o fato é que durante todo esse mês, por coincidência ou não, nuvens escuras vinham do noroeste e corvos de movimentavam com mais freqüência se empoleirando nas caixas de correios das pessoas. Dezenas de pássaros pretos circulando os ares vindos do noroeste rodeando Lubrín, rodeando a torre do Sino da Catedral.
Ainda em segredo, Gustavo e Sid estavam apreensivos com o badalar de sinos que não tinham o mesmo efeito de outrora, é claro que ainda aquele sorriso perpassando o rosto das pessoas, mas ele passou a ser duvidoso e não mais com a mesma sinceridade. Não haveria Lubrín sem alegria. Aliás, houve como vocês verão caso continuem lendo, mas nada disso é bom, pois as memórias desse lugar são de risadas, cachimbos e bebidas, pessoas sorrindo, namorados nas praças. As pessoas vivendo felizes com suas vendas, burgueses trocando moedas com outros burgueses; algum mal-caráter roubando certa barraquinha de roupas no fim da rua e depois correndo de fugindo do dono da loja; o alaúde sendo tocado por alguma amador contador de histórias; o antigo badalar da catedral ressoando e preenchendo o silêncio matinal. Ah, isso que é um reino, diziam todos.
Você provavelmente sabe do que estou falando, daquela paz interior onde seu dia está bom, quando o sol se pronuncia alto sem nuvens ao céu e uma inspiração passa por seu corpo todo e tudo passa a dar certo. Os tempos em Lubrín eram a maioria assim, mas como você já sabe de tanto eu dizer como lubrino... Não se pode confiar em bruxos, pois o que eles fizeram para se aproveitar do que Gustavo havia pensado é algo que nesse tempo fora imperdoável, mas é claro que não havia maneira de provar, pois eles foram muito astutos e nem mesmo a sabedoria de Sid podia prever tal caso.
Como logo no início eu citei isso tudo é provavelmente é a pior coisa que eu posso contar-lhe, isto é, o que vem a seguir. Eu precisei dizer-lhes tudo isso, ter essa conversa você e eu para aceitarmos os fatos, mas chega. Um mês de corvos, vociferações, relâmpagos e outras luzes estranhas e nuvens escuras no noroeste é demais para mim, está no momento de encarar o que houve depois de um mês que à cavalo os bruxos chegaram em Lubrín e saíram com uma promessa. E essa é uma história que pode e deve ser contada aqui, assim como tudo que veio atrás e vem a frente.

11

DO NOROESTE ERGUIA-SE uma cortina densa de nuvens, que logo se espalhara sobre a região de Lubrín e mais além, tornando tudo cada vez mais cinzento. O sol prostrava-se pálido por trás de uma pequena camada de nuvem branca. Logo, os relâmpagos começavam a dançar por dentre elas, fazendo por vezes barulhos hediondos.
Logo pela manhã como nos dias de chuva era comum, Sid, o rei e agora também Ventura sentavam-se ao pé da lareira, com uma luz de tochas. Havia chá quente na mesa, uma garrafa de vinho, daquele dos Daco e no consolo da lareira, Sid depositara um livro. Iria ler para os reis, pois uma chuva se aproximava.
- Hoje completa um mês desde que os druidas nos prometeram retorno, majestade – dissera Sid, com a xícara a caminho da boca.
Ventura de pernas cruzadas, o saiote longo, mas leve, com forro branco terminando com uma renda detalhada. Olhara para o rei que a segurava com o braço direito.
- Hoje será a cerimônia?
- Sim, meu bem. Creio que será hoje – disse olhando para Sid, depois virando o rosto para ela.
- O tempo está propício para eles, meus reis. Não são pessoas confiáveis, vocês sabem. Devem deixar vários guardas de olhos bem abertos. Reservei os adereços de proteção para nós. Uma sombra passa em meus pensamentos, há alguma coisa de errado, algo me diz isso – disse Sid.
- Lubrín jamais fora tão cinzenta e escura. Só eu notei que os sons dos sinos já não ecoam mais como antigamente? – falou Ventura. Sid e Gustavo olharam para ela.
- Então já é algo evidente? – disse o rei. – Estávamos esperando alguma declaração sua, na hora certa, para termos certeza. É por isso que precisamos do ritual!
Sid mantivera-se quieto, em seus pensamentos algo estaria fora dos eixos.
Uma trovoada ecoou do lado de fora. Por Lubrín, cachorros latiam para a “criatura-céu” que arrebentava trovões e rajadas. As pessoas reuniam-se dentro de seus lares perto da lareira, ou mais perto do fogo mais próximo. A família Daco, agora em sua nova casa – a qual falarei depois como eles ficaram-, bebiam vinho quente com gengibre, mas de mesma forma, não conseguiam sorrir.
Rumores sobre o rei ter se convertido à bruxaria estavam nascendo nos bairros mais supersticiosos. Acreditavam que os druidas teriam acesso ao reino e os mais exagerados diziam que tentariam tomar o trono, mas é claro que não é nada disso. Porém, os lubrínos tinham motivos para crer em tal coisa. Aquele som belo de hora em hora, era seco e sem vida, com a alegria de uma lua minguante. Não. Com a tristeza de uma lua nova.
- E o que pretende fazer finalmente – disse Ventura. – Acho que já é hora de me contar.
O conselheiro olhara para Gustavo, este se ajeitara e tomara as mãos delas em suas e começara a contar:
- Por talvez um século a antiga Lubrín de Sinos vem sendo iluminada por um encanto de meu pai. Ele, junto com Rolando encantaram os sinos da catedral para trazer alegria ao nosso povo. Os sinos viraram sinônimo de sorrir. O sorriso era freqüente, mas agora, como você disse... Parece tudo diferente – ele assumira um olhar de pesar. Seus pensamentos voltavam para seu pai e um luto que nunca tivera antes, agora o tomava. Uma leve chuva começou do lado de fora.
- Encanto? – perguntara ela.
Gustavo olhara para Sid e este pusera a recitar com uma voz soturna.

Para todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido,
Uma alegria viria comigo, uma memória de um amigo
Altas risadas com o cachimbo no alto da colina,
Menos uma hora do dia, uma a mais de cantoria

Os sinos resplandecem seu calor
A bebida cai em meu colo
Uma bebida a mais na noite
Um badalar a menos na vida


Para todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido
Um casal teria um filho, um diário seria escrito
Um choro no meio da noite da criança
Uma lembrança de uma infância

Para todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido
Uma reunião de companheiros na taverna violão-partido
Uma música de porto na gaita com os amigos
Mais bebida, acenda o cachimbo, mais uma música além das colinas

Para todo aquele que o som do sino tocasse seu ouvido,
Uma alegria viria comigo, uma memória de um amigo
Altas risadas com o cachimbo no alto da colina,
Menos uma hora do dia, uma a mais de cantoria

- Que lindo! – dissera Ventura, seus olhos agora tinham outro brilho.
- Sim. Mas não há mais sentido nisso tudo, os tempos são outros agora, por isso minha mudança. O que quero fazer e tornar o vinho símbolo de Lubrín e finalmente poderemos ter o Castelo de Vinho.
- E no que isso pode ajudar, Gustavo?
Sid tomava seu chá quieto, olhando para a manhã escura do lado de fora, a chuva caindo fina e lenta.
- O odor do seu vinho, minha rainha, este passará a preencher todas as casas, haverá uma enorme fonte no castelo com a qual colocaremos aquela estátua que você pediu. No entanto, as uvas apenas crescerão dentro do castelo todas as estações do ano, todos os dias do mês. E a alegria voltará às ruas de Lubrín. Não haverá mais tempos tristes por aqui enquanto formos reis, enquanto eu for vivo!
Nisso, alguém bateu na porta.
- Entre! –disse Gustavo.
- Majestade – dissera o guarda real. – Os druidas chegaram.
- Diga-lhes que esperem. Já vamos descer.
- Venham meus reis. Vou buscar as proteções – dissera Sid.

***

Ao que os três desceram depararam-se com Demétrio e Helena e um homem que carregava uma enorme arca nas costas. O sujeito era corcunda e já devia fazer isso a anos. Sid teve a certeza de ver marcas de tortura em suas mãos, mas logo notou que eram calos grossos e rachados. Estavam os três vestidos de branco, com uma capa de chuva de couro cobrindo-lhes. Eles as despiram e acompanharam-nos até o palácio real, onde seria feito o ritual. Do lado de fora a chuva já estava mais densa e pesada, mal dava para se escutar com o barulho da chuva martelando o chão e os telhados das casas.
- Onde estão todas as uvas que pedimos? – perguntara Demetrio.
- Estão todas ali – dissera Gustavo apontando para um enorme monte de uvas claras e escuras, grandes e pequenas. Muitas uvas para dois anos. Um monte verdadeiramente imenso.
Os bruxos aproximaram-se maravilhados. O ser – como Sid passara a denominar mentalmente o corcunda, que já a essa altura depois de ter balbuciado algo estranho e agir de maneira diferente, já duvidava que podia ser um humano, ou ao menos um humano normal – abrira a arca e Helena começara a retirar os materiais de rito. Haviam livros velhos, enormes, grimórios e pergaminhos longos. Retiraram também, velas brancas e sementes. Com elas fizeram um círculo em volta do monte de uvas e acenderam as velas.
A chuva caia pesadamente do lado de fora e relâmpagos hediondos criticavam a terra. Houve clarões e roncos estranhos. Empoleirados por diversos lugares de Lubrín, corvos grasnavam e protestavam, molhados, e negros como uma noite que dormia sem acender o abajur de estrelas.
No entanto, no meio do ritual, algo que não estava nos planos nem de Gustavo, que assistia pasmo tudo aquilo, ou Sid, que estava atento e apreensivo segurando seu colar na mão, Ventura que abraçava o rei enquanto ouvia aquelas conjurações que pareciam vozes de ventos, ou até mesmo de Demétrio que fazia o ritual e de Helena, do topo, uma única uva se desprendeu, rolou e rolou por dentre as demais uvas, e veio caindo aos poucos, como que se fugisse do ritual que ali acontecia, rolava pelo enorme monte como uma pedra numa montanha, descia, mas ninguém a viu, ninguém. Porém...
Porém ao que o ritual finalizou-se com sua última palavra de encanto, a uva tocara o chão e assumira uma coloração muito escura que chamara a atenção de Demétrio, depois clareou-se como pérola e ele caminhou até ela e fez como se fosse parte do ritual, agachou-se numa reverência ao monte de uvas e pegou escondido aquela única uva e a guardara em no bolso de seu sobretudo branco.
“Uma uva esperta... Minha uva esperta... A Uva esperta”, pensara ele sorrindo por dentro.
            E foi assim que Lubrín de Sinos tornara-se a Lubrín do Castelo de Vinho, como disse logo no início de tudo e tão logo a novidade fora espalhada por todo o reino. O cheiro se propagou pelas ruas e as decorações passaram a mudar, as roupagens passaram a ser diferentes, os quadros e livros falavam das uvas como algo surpreendente, deuses dos vinhos passaram a ser venerados e a alegria perpetuava novamente depois daquele dia escuro de chuva... mas algo intrigava Demétrio que guardava aquela uva. “Uma uva muito esperta”.